Revolucionárias | Léa Campos, a árbitra

Primeira juíza de futebol do mundo, ela precisou bater à porta do presidente Emílio Garrastazu Médici para ter o diploma reconhecido

30.10.2017  |  Por: Karla Monteiro

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Revolucionárias | Léa Campos, a árbitra

“Eu não estava preocupada com pioneirismo. Mas queria abrir essa porta, quebrar esse tabu. Toda vez que eu entrava em campo representava uma batalha vencida. Tive a oportunidade de viajar o país inteiro e viajar o mundo, apitando futebol. Minha maior felicidade naqueles anos era ouvir a torcida gritar: ‘Léa! Léa! Léa!’”

Antes dela, nenhuma mulher sentira o gosto de, com um apito, reger o espetáculo. Em 1971, a mineira de Abaeté Lea Campos tornou-se a primeira mulher árbitra de futebol do mundo. A estreia foi no México, no primeiro amistoso mundial de futebol feminino, do qual participaram seis equipes: México, Argentina, Inglaterra, Itália, Dinamarca e França.

Para ter o diploma de juíza reconhecido pela Confederação Brasileira de Desportos (CBD), a atual CBF, Léa percorreu por quatro anos os corredores da burocracia. Eram os anos de chumbo – e o ocupante do Planalto chamava-se Emílio Garrastazu Médici, governando sob a vigência do AI-5. Foi à porta dele que Léa bateu, como último recurso, para derrubar a intransigência de João Havelange, presidente da CBD, que decretara: “Enquanto eu for presidente da CDB, mulher não apita, porque eu não quero.”

Léa tem hoje 72 anos e vive nos Estados Unidos – onde montou um bufê de festas – desde 1992. Sua carreira no futebol foi curta. Em 1975, sofreu um acidente que a tiraria dos gramados. Numa viagem entre Belo Horizonte e São Paulo, o ônibus da Viação Cometa em que viajava capotou. Lea se submeteu a 98 cirurgias para não perder a perna.

 

 

Ela por ela

 “Comecei a me interessar por futebol em Belo Horizonte, depois da inauguração do Mineirão, em 1965. Tornei-me uma cruzeirense fanática, que seguia o time para todos os lados. Não entendia nada de futebol, mas gostava do ambiente. Só sabia que era gol porque o placar mudava. Um dia, assistindo a um jogo com o meu namorado na época, ele resolveu que eu tinha que aprender, porque não aguentava mais as minhas perguntas estúpidas. Fui então fazer o curso de arbitragem na Federação Mineira de Futebol. Fiz o teste, passei e me aceitaram no curso.

Para me formar, enfrentei os campos de várzea. Cumpri todas as determinações da CBD. Corria o ano de 1966. Aí começou a minha saga. Primeiro, o (João) Havelange me disse que a Constituição não permitia. Fui então atrás do Pedro Aleixo, o maior advogado do país na época. E ele me mostrou que na Constituição não havia essa proibição. Voltei no Havelange, que disse que a constituição física da mulher era muito frágil, não dava. Resolvi me submeter a um exame legista. Lembro que quando cheguei na Medicina Legal o legista me disse que nunca tinha feito o exame em pessoa viva. A próxima do Havelange foi: ‘E quando você estiver menstruada?’ Aí eu me lembrei das nadadoras. Entrar dentro d’água menstruada era muito pior do que correr atrás de 22 jogadores. Por fim, o Havelange falou: ‘Enquanto eu for presidente, mulher não apita, porque eu não quero.’ Respondi: ‘Acima do senhor há de ter alguém.’ Foi quando fui falar com o presidente Médici.

Para chegar até ele, fiz praticamente uma volta ao mundo em 180 dias. O encontro foi marcado na Granja do Torto, um almoço. Pior fim de semana de toda a minha vida. Governo militar, pensei que o bicho ia pegar para mim. Fui com medo, mas fui. Durante a viagem, imaginava um milhão de coisas horríveis. Cheguei a Brasília, fui bem recebida, almocei com o presidente e saí de lá com uma carta de próprio punho autorizando a minha diplomação.

Quando voltei à CBD, era o dia da despedida do Pelé do futebol brasileiro: 18 de julho de 1971. A imprensa inteira no Rio. O Havelange não queria me receber, eu ouvindo ele mandar me dispensar. Acabei entrando, entreguei a carta e ele logo mandou reunir a imprensa. Fez um discurso: ‘É com muita honra que levo ao mundo a primeira árbitra de futebol profissional.’ O Havelange me coroou. Um dia cruzei com o Pelé num hotel e ele me disse que dividimos as manchetes do dia.

Em campo, eu era mais xingada pelas mulheres. As esposas dos jogadores diziam que eu queria era arrumar marido. Eu não estava preocupada com pioneirismo. Mas queria abrir essa porta, quebrar esse tabu. Toda vez que eu entrava em campo representava uma batalha vencida. Tive a oportunidade de viajar o país inteiro e viajar o mundo, apitando futebol. Fui árbitra por quatro anos, quando sofri um acidente, num ônibus da Cometa, indo de Belo Horizonte para São Paulo. Foram 98 cirurgias para não perder a perna. Qual a minha maior felicidade naqueles quatro anos? Ouvir a torcida gritar: ‘Léa! Léa! Léa!’”

 

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