20 anos de ‘Sex And The City’: depois de apontar os erros da série, uma defesa
Uma resposta ao padrão de críticas que o seriado vem sofrendo na internet e na grande imprensa
09.08.2018 | Por: Maria Clara Drummond
Dezembro passado, escrevi um texto nesta plataforma sobre os 20 anos de Sex and the City, com os erros e acertos da série. Pois eu gostaria de fazer mais alguns comentários, dessa vez majoritariamente positivos. Para isso, peço que me concedam uma licença poética: ignorar tanto os dois terríveis filmes, quanto o lamentável desfecho final, para focar nos episódios que revolucionaram a feminilidade da época.
Acredito que muitas das críticas à série são injustas por três fatores: não considerar o contexto histórico, julgamento mais rígido e desproporcional quando o público-alvo é feminino, e confusão entre o personagem/narrador e o ponto de vista da obra.
O primeiro ponto é fácil de resolver no que diz respeito ao foco excessivo em mulheres brancas heterossexuais que saem todas as noites para beber cosmopolitan em sapatos Manolo Blahnik. Em 1998, a discussão racial não estava tão avançada como hoje no mainstream. Tampouco era comum na televisão a presença de LGBTs. A moda estava na moda, e uma mulher optar por se vestir de maneira tão única e original, longe das tendências ditadas pelas revistas, era considerado um valor. Afinal, Carrie Bradshaw foi a precursora da Man Repeller.
Hoje, o jornalismo é praticamente uma profissão em extinção, e parece impossível que uma colunista de jornal more num apartamento quarto e sala na região mais rica da exclusiva Manhattan. No entanto, Candance Bushnell vivia de forma bem similar enquanto escrevia sua coluna Sex and the City no New York Observer: não tinha dinheiro para pagar aluguel, por vezes precisava dormir de favor no sofá de amigos, mas graças ao sucesso de seus textos, tinha status suficiente para frequentar as melhores festas, e ser amiga de celebridades da época, como o escritor Bret Easton Ellis e o publisher da Vogue e GQ Ron Galotti, o verdadeiro Mr. Big. Portanto, sua alter-ego não vivia tão descolada da realidade nos anos 90.
O segundo ponto é a sensação de que as características acima – falta de diversidade, enredos heterocêntricos, futilidade excessiva – também estão presentes em muitos shows destinados aos homens, mas mesmo que o programa alcance importância similar a SATC, isso não é enfatizado. I can’t help but wonder se um produto voltado para o público masculino teria críticas tão duras.
A feminista Roxane Gay, ela própria fora dos padrões representados na televisão, escreve sobre essa questão em Bad Feminist: “Pouco antes do lançamento de Bridesmaids, houve muito debate sobre como o filme estava desbravando novos territórios. Oh, mulheres são engraçadas de verdade. Havia muita pressão sobre esse filme, que tinha que ser bom se qualquer outra comédia direcionada ao público feminino quisesse ter a chance de ser produzida. Este é o estado das coisas para as mulheres no entretenimento, tudo está sempre por um fio. (…) No piloto de Girls, Hannah Horvath explica aos pais por que eles devem apoiá-la financeiramente: ‘Eu acho que eu poderia ser a voz da minha geração. Ou, pelo menos, de uma geração… Em algum lugar.’ Nós temos tantas expectativas; estamos tão sedentos por representações autênticas de meninas, que só ouvimos a primeira parte dessa afirmação. Ouvimos que Girls deveria falar para todas nós.”
O terceiro ponto é o que eu gostaria de destacar com mais cuidado. Acredito esteja ocorrendo uma espécie de revisionismo crítico que leva mais em consideração a moral do personagem do que a lógica interna daquele universo. E que isso seja uma consequência do crescente puritanismo da nossa época, que exige retidão moral até mesmo de pessoas inventadas – seja na literatura, cinema ou teledramaturgia.
Para dar um exemplo extremo, mas que é bem representativo desse movimento, são as problematizações recentes acerca de Lolita, de Vladimir Nabokov. Apontam que não se trata de uma história de amor, e sim de sucessivos estupros a uma criança. Ora, isso é óbvio. Se no romance há frases que mostram o contrário, é porque narrador é o próprio criminoso. Hubert Hubert tenta nos convencer que é uma história de amor justamente porque é um manipulador frio e calculista. Ou seja: é um narrador não confiável.
O anti-herói é o protagonista pelo qual o público torce e se identifica apesar de suas grandes falhas, inclusive morais. Mas, enquanto o anti-herói masculino é comum, a versão feminina ainda é tabu
Se num romance literário essas nuances são mais sutis, em Sex and the City o deslocamento do ponto de vista do seriado em relação à narradora é expresso com todas as letras pelas demais personagens, deixando claro o quão condenáveis são as atitudes de Carrie Bradshaw. Isso vale para sua irresponsabilidade financeira, mas, principalmente, para sua imaturidade afetiva.
No último capítulo, ela diz: “Eu estou procurando por um amor que seja real: ridículo, inconveniente, que me consuma, e que eu não consiga viver sem.” Mas, embora a visão que ela tenha de si mesma é de alguém tão romântica, o que vemos na tela é uma mulher viciada em relacionamentos tóxicos que sejam baseados em conflito e drama, e não à toa ela passa o tempo inteiro atrás de um homem manipulador e emocionalmente imaturo como Mr. Big.
Inúmeras vezes é apontado o quão doentio é esse padrão: “Você está obcecada por ele e não para de falar disso. Não aguentamos mais”, diz Samantha, endossada por Charlotte e Miranda. Em outro episódio, a própria duvida do quão genuíno são seus sentimentos por Big: “Eu realmente o amo ou estou viciada na deliciosa dor de desejar alguém inatingível?”
Dessa forma, se analisarmos a maioria dos quase cem episódios, vemos que não há somente uma romantização do relacionamento tóxico de Carrie e Big, e sim uma crítica. “Carrie acredita que o homem da sua vida é Big. Nas comédias românticas clássicas, isso dá certo. Na vida real, talvez seja considerado uma patologia”, diz um dos criadores da série, Michael Patrick King. Isso não é visto em demais séries da época, como Friends: tanto no ponto de vista interno do seriado, quanto a partir da ótica dos demais personagens, Ross e Rachel eram de fato feitos um para o outro, e raramente é problematizada a possessividade excessiva de Ross.
Na época, era comum que toda garota que fosse fã do seriado se identificasse com Carrie. Hoje, é só fazer uma rápida pesquisa na internet para encontrar um grande número de artigos que enumeram razões que mostram o porquê de Carrie Bradshaw ser “irritante”, “a pior pessoa”, “um modelo a não ser seguido”. Só quem é um péssimo leitor de subtexto acha que algum dia já foi algo aconselhável seguir os passos de Carrie Bradshaw. Assim como Hubert Hubert, ela é uma narradora não confiável, porém sedutora. É uma escritora, que romantiza sua vida para uma coluna de autoficção no jornal, seu objetivo é nos fazer acreditar que, mesmo não indo muito além de Staten Island, ela não tem um relacionamento porque é uma mulher indomável.
Há, portanto, uma separação entre o ponto de vista da narradora/protagonista, e o que acontece à sua volta contradizendo suas afirmações iniciais é o que dá as dicas necessárias sobre o ponto de vista interno à obra. As demais personagens servem como uma espécie de proxy que faz a autocrítica estrutural do seriado. Se parece contraditório que um programa de televisão destinado a retratar a emancipação feminina através do sexo gaste tanto tempo com conversas intermináveis sobre homens e relacionamentos, Miranda verbaliza: “Como que quatro mulheres inteligentes não conseguem falar de outra coisa que não seja namorados? É como se estivéssemos na sétima série, só que com uma conta própria no banco.”
Ademais, é normal que seja ambíguo o sentimento em relação a uma personagem que foi construída para ser uma anti-heroína. Os seriados anteriores que eram voltados para o público feminino eram moldados a partir de protagonistas feitas para serem modelos aspiracionais – Mary Tyler Moore é o melhor exemplo. O anti-herói é o protagonista pelo qual o público torce e se identifica apesar de suas grandes falhas, inclusive morais. Mas, enquanto o anti-herói masculino é comum, a versão feminina ainda é tabu.
Queremos personagens femininas complexas, mas isso necessariamente inclui falhas e contradições. Por isso, por mais que subscreva a mensagem da camiseta que diz We Should All Be Mirandas, não concordo que ela deveria ser a verdadeira protagonista, conforme clamam diversos ensaios feministas. Se fosse este o caso, teríamos um seriado completamente diferente, pois Miranda Hobbes tem o arquétipo aspiracional das “you go, girl”, como Mary Tyler Moore. E, por ser uma personagem secundária, Miranda tem menos camadas – e, portanto, menos defeitos morais – que Carrie.
Se Carrie não fosse uma personagem tão bem construída, não estaria suscitando debates tão acalorados, 20 anos depois do seu nascimento. Mas, talvez, o erro dos seus criadores em relação à forma em que ela foi retratada tenha sido um apego e carinho grande demais à sua criação. Isso impossibilitou um arco dramático mais distópico em que ela sofresse as consequências reais de sua leviandade. Tendo a pensar que, caso o final fosse menos convencional, os inúmeros ensaios escritos sobre o seriado tivessem outra ótica.
Assim, nos 45 minutos do segundo tempo, Darren Star e Michael Patrick King transformaram a principal anti-heróina da televisão do século passado numa heroína banal, e fez com que milhares de garotas acreditassem que conquistariam o homem inatingível por quem obcecaram, e posteriormente, quando a realidade se impôs em suas vidas, se sentissem traídas por seu modelo aspiracional.
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