5 perguntas para Eliana Alves Cruz

Você ainda vai ouvir falar muito nessa escritora que reconta o período colonial brasileiro com o protagonismo de pessoas negras, mulheres e LGBTQI+

11.03.2022  |  Por: Renata Corrêa

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5 perguntas para Eliana Alves Cruz

Conheci a literatura de Eliana Alves Cruz da melhor maneira que se pode conhecer uma nova autora: indicada por uma amiga, também escritora, que tinha devorado “O Crime do Cais do Valongo” num feriadão prolongado. “É tudo que você gosta: personagens bem construídos, suspense, e um final surpreendente”. Comprei os livros de Eliana, e era tudo isso mesmo, não consegui largar até chegar ao final e emendei um livro no outro, lendo devagarzinho o último, com medo de acabar. Recontando o período colonial brasileiro com o protagonismo de pessoas negras, mulheres e LGBTQI+, Eliana sabe que o presente e o futuro dependem da gente não esquecer nem apagar o passado.

Eliana, me conta quem é você e como decidiu escrever ficção?

Sou muitas coisas (filha, mãe, brasileira, latino-americana, jornalista, etc), mas sobretudo sou uma mulher negra. A condição de mulher preta sempre me precede. Não importa aonde eu vá, não importa o que faça, o meu corpo feminino e negro se movendo no mundo determina a minha trajetória. É uma experiência única estar em um corpo que é visto por significativo número de pessoas no planeta como inferior, como não humano.

Esta condição me levou à escrita de ficção. É ela que me impulsiona a exercitar a fabulação da nossa história, da nossa vida, da nossa especialíssima riqueza intelectual e espiritual, mesmo quando não falo explicitamente sobre as questões mais “caricatas” que cercam o racismo aliado ao sexismo. A simples presença neste espaço da ficção, tão dominado e cercado por um único grupo ao longo de tanto tempo, é um discurso inteiro.

Você passeia entre gêneros muito queridos no Brasil: o romance histórico, o fantástico, a investigação policial. Se considera uma autora pop?

Não sei bem… hahaha. Escrevo o que eu gostaria de ter lido há muitos anos. Gostaria de ter sido uma adolescente com acesso à própria história fabulada de uma forma mais honesta, mais digna. Gostaria de ter lido autoras como tantas que hoje vejo, preocupadas em testemunhar o seu tempo em letras preocupadas em não inviabilizar ou estereotipar ninguém.

O romance histórico é um gênero possível quando se deseja de alguma forma remontar pedaços grandes do quebra-cabeças complexo que nos formou e toda esta caminhada esbarra em casos de polícia. O sistema escravista no qual o país foi assentado e do qual se beneficia, se locupleta e se esconde ainda hoje, em pleno século 21, é um enorme caso de polícia. Por fim, o fantástico é algo inerente à minha, nossa ancestralidade negra, indígena… É algo que aprendemos a encarar desde cedo como parte do mistério que envolve a vida.

As imagens criadas pelos seus romances são muito poderosas. O encontro de ancestrais no “Crime do Cais do Valongo” e os papéis inúteis voando em “Nada Digo de Ti que em Ti Não Veja”. Como é o processo criativo para chegar nessas cenas?

Quando escrevo mergulho de verdade na história. Não fico na superfície. É uma imersão muito profunda. O jornalismo esportivo me treinou para escrever com muito ou pouco barulho, com calma ou agitação no entorno.

Então, faço este mergulho com música. Acho uma música ou uma playlist que me ponha naquela vibração que desejo e deixo as palavras fluírem. Em “Nada Digo de Ti que em Ti Não Veja”, por exemplo, escutei de canto gregoriano, Vivaldi e Beethoven a Tiganá Santana. Vejo as cenas, faço o filme na cabeça. Daí talvez esta sensação que muita gente me fala de estar dentro da história e de visualizar.

Você levanta debates contemporâneos muito relevantes com suas narrativas de época – em um dos seus livros uma jovem transexual vive um romance com um mocinho cisgênero. Fala mais dessa mistura de passado com presente nos seus livros?

Esta é a parte mais fácil porque a verdade é que ainda estamos de certa forma no pós-abolição e de muitas coisas ainda nem saímos! O Brasil é uma nação construída em cima de muito fanatismo religioso e noções loucas de moral e bons costumes atrelados a este fanatismo. Tudo isto numa mistura explosiva de povos vindos de pontos completamente diversos do continente africano e de numerosas nações indígenas subjugadas por violência colonial em níveis incalculáveis. As sequelas são tantas, que é impossível enumerar. Teremos os ecos disso tudo por séculos. Sempre que falarmos deste pasado existirá uma conexão pesada com o presente.

Por fim, queria que você mandasse um recado para as meninas negras que desejam escrever e que você contasse um pouco mais dos seus projetos futuros.

O meu recado principal é: escreva! Liberte-se do sentimento de não-pertencimento ao ato de escrever que te impuseram e da obrigação de ser genial e perfeita sempre. Escrita é exercício e observação da vida. Temos direito ao amadurecimento artístico também. Caminhe pelo mundo observando atentamente (leitura diversificada está aqui incluída) e… escrevendo. Tenha carinho com as palavras que você usa, pois descendemos de povos que acreditam na palavra como sopro divino, como força de criação. Cuide das palavras.

Projetos são muitos! Este ano (2022) lanço um livro infantil e um romance. Estou na batalha em algumas salas de roteiro também, pois acredito que o audiovisual fez ao longo de décadas um desserviço gigantesco para a imagem e a dignidade de pessoas negras neste país. Um segmento que por longuíssimos anos só não assumiu a eugenia literalmente porque pegaria muito mal, mas que produziu histórias absolutamente inaceitáveis. Felizmente, vemos uma crescente mudança fruto de uma luta intensa por protagonismo e por voz narrativa. Chegamos a um ponto de não retorno. Que bom!

 

Renata Corrêa é roteirista, escritora e dramaturga com forte presença nas redes sociais. Seus trabalhos têm foco no humor, na emoção e no protagonismo feminino

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