A arte de levar o sofrimento para a festa

Tenho duas cirurgias na coluna e sofro de dores fortíssimas. Aprendi que alegria e otimismo são analgésicos bem mais potentes do que esses de farmácia

13.11.2018  |  Por: Lígia Scalise

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A arte de levar o sofrimento para a festa

“Você tem Síndrome da Cauda Equina, uma séria condição neurológica caracterizada pela compreensão das raízes dos nervos situados na medula espinhal”, disse o neurocirurgião. Não entendi nada. Também era bem difícil me concentrar, porque estava urrando de dor naquele pronto-socorro. “Lígia, presta atenção: vou te internar agora, sua hérnia é gigante, estourou o disco e invadiu a medula, comprimindo vários nervos. Você precisa de uma cirurgia de emergência ou corre o risco até de ficar paraplégica”, reforçou ele, desta vez me fazendo entender a gravidade.

E foi assim, no dia em que completei 34 anos, segurando a mão do meu namorado, que veio da Suíça para comemorar meu aniversário, que encarei a mesa de cirurgia pela segunda vez na vida. Ao mesmo tempo que eu incontrolavelmente chorava de dor, tentava acalmá-lo: “Vai ficar tudo bem, já já estou de volta pra gente se divertir!”

Nem ele e nem ninguém acreditava que eu estava naquelas condições. Afinal, na noite anterior eu estava no samba, virando minha meia-noite, bailando feliz. “Como assim, uma cirurgia de urgência?”, todo mundo me perguntava. A verdade é que eu tinha tomado remédio à base de morfina na veia para curtir a minha festa. Parece loucura, né? Mas minhas dores me acompanham há tanto tempo que aprendi a não ser refém delas.

Eu quero viver! Se é para sentir dor em casa, prefiro sentir dor na festa. É claro que em muitas ocasiões isso não é possível. A dor traz mesmo limitações. Mas, sempre que consigo, carrego ela comigo. E tenho conhecimento de causa: endorfina e otimismo são analgésicos bem mais potentes do que esses de farmácia.

Minha relação com a dor começou bem cedo, quando eu tinha só 6 anos de idade. Um dia acordei mas não consegui sair da cama. Minhas pernas estavam duras feito aço. Assim, do nada. Minha mãe, apavorada, me levou para o hospital e recebeu o diagnóstico de poliomielite, a tal da paralisia infantil. Lembro de vê-la chorando e rezando. Eu só conseguia pensar: “Por que ela está tão triste? Posso ser cabeleireira, ainda mexo meus braços.”

Não virei cabeleireira e não fiquei paralítica – graças às rezas da minha mãe! Os médicos até hoje não sabem explicar e dizem que, possivelmente, o vírus era fraco e não se alojou na minha medula. Prefiro acreditar que o meu corpo é que é forte. Seja como for, eu voltei a andar.

A dor me ensina a redimensionar e ressignificar os problemas da vida

Muito tempo depois, em 2011, comecei a sentir fortes dores na coluna. Meu médico me desaconselhou a fazer um mochilão, mas eu já estava com tudo pago para passar o réveillon na Argentina ao lado de uma amiga. Fui com fé. Na mochila levei muitos remédios e receitas médicas para injeção de corticoide, caso precisasse. E precisei. A dor para andar ficou insuportável. Dia sim, dia não, fui tomar a tal injeção. Conheci mais farmácias do que pontos turísticos na Argentina!

Insisti na viagem até o fim do roteiro, mas quando voltei para o Brasil já tinha consulta médica marcada. Ali soube que havia uma hérnia de disco já bem grande, extrusa (quando já rompeu o disco), pinçando meu nervo ciático. Lutei por dez meses, com quiropraxia, RPG, fisioterapia, acupuntura, remédios, vitaminas, mil tratamentos, mas quando não conseguia mais andar, encarei minha primeira cirurgia. Foram 30 dias de repouso e meses de fisioterapia para retomar a rotina. A alegria de ver o corpo se recuperando não tem tamanho.

Vida normal até dezembro de 2017. E aí voltei a sentir dores muito fortes. Descobri uma nova hérnia enorme, no mesmo disco. Eu fiquei arrasada e só pensava: “Por que de novo? O que eu tenho que aprender com isso? Como vou suportar tanta dor mais uma vez?” Perdi o sono por noites seguidas procurando respostas que não existem. Só vi um jeito: encarar a dor. Foi o que fiz nos últimos oito meses, lutando com todos os tipos de tratamentos mais uma vez, até chegar naquela cena do meu aniversário. Hoje estou me recuperando da segunda cirurgia.

Os médicos não explicam por que minhas hérnias evoluem tanto. E tem muita gente que fica com dó de mim. Tenho minhas limitações: por exemplo, não posso pegar peso, dormir, sentar, deitar, levantar ou agachar de qualquer jeito, nem fazer movimento com impacto como correr ou pular; também não posso mais dirigir um carro manual. De tudo, o que mais me parte o coração é não poder pegar meus sobrinhos no colo como antes. Mas não mereço pena e não tenho motivos pra reclamar. Entendo que tudo isso é parte da minha história, cada um tem os seus obstáculos. A dor me ensina a redimensionar e ressignificar os problemas da vida.

O que pode ser mais difícil do que não ter saúde? O que é preciso para destruir minha energia, meu otimismo e meu humor? Ah, meu amor pela vida é tão maior do que as pequenices da rotina, essas coisas que acabam sugando nossa energia, como trânsito, burocracias, discussões e fofocas. É importante também não ficar preso por medo das possíveis dores no futuro. Me cuido com disciplina para manter minha saúde. Se uma nova hérnia surgir… Bem, aí tenho que encarar tudo de novo, né? Espero que não aconteça, mas não dá pra adivinhar o amanhã. Vamos focar no hoje!

Quando acordei dessa última cirurgia, perguntei ao doutor: “Já posso planejar a minha próxima viagem?” A parte linda dessa história real é que ele respondeu “Sim”. Olha que chance maravilhosa que ganhei mais uma vez: uma cirurgia de sucesso é uma sorte tremenda! Enquanto me recupero – estou no intensivão de remédios e fisioterapia três vezes na semana –, minha cabeça já está planejando correr o mundo ao lado do homem que segurou a minha mão naquele hospital. Preciso fazer essa sorte toda valer a pena!

 

Lígia Scalise é jornalista, escreveu para revistas durante muitos anos e migrou para o audiovisual. Apaixonada pelas pessoas e suas histórias inusitadas, é especialista em pesquisa de personagens para conteúdos

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