A cidade não foi feita para as mulheres
Dos assédios aos nomes e estátuas de rua, os motivos pelos quais a cidade me apaga constantemente
23.05.2018 | Por: Gabriela Gaia Meirelles
O que se segue é um relato escrito à caneta torpe sobre um filme em processo.
Antes de tudo, questão de linguagem: os números, os números. Falemos a linguagem da ciência. Abro o filme com uma tela preta.
Começo então com um plano geral: no Brasil, 61% dos arquitetos… São mulheres. E então, faço questão de repetir. É preciso repetir. No Brasil, 61% dos arquitetos são mulheres.
Corto em seguida para um plano médio: pelo que pesquisamos até 2016, no Rio de Janeiro são 217 estátuas de homens. E 14 de mulher. Dessas 14, a maioria se refere a bustos de mulheres nobres, encomendados por suas famílias, e situados em praças, rodeadas por grades. Sim, temos Mercedes Baptista, primeira bailarina negra do Theatro Municipal e uma das precursoras da dança afro no país, ali na Zona Portuária. Sim, temos Clarice Lispector no Leme. Mas, com muito esforço, somos 14.
No maior cartão-postal do país, cidade maravilha onde 53.17% da população, segundo o censo de 2010, é de mulheres, somos 14, apenas 14, “dignas” de povoar a memória da cidade.
Em seguida, sugiro um plano de referência. Cito Beatriz Colomina, arquiteta e historiadora: “Mulheres são como fantasmas na arquitetura moderna: presentes em todos os lugares, cruciais, mas estranhamente invisíveis.” Cito o site Arquitetas Invisíveis, e uma palestra da USP sobre arquitetura e a questão de Gênero.
Inegavelmente cito Marielle Franco. E agora, nesse preciso momento, congelo. Foi assim que nasceu o AFETO, curta-metragem experimental que fala sobre ocupação feminina do espaço urbano, e que dirijo há dois anos com a também realizadora Tainá Medina. Foi assim. Num debate público, em plena praça XV, 19h, entrecortado pelo rush de uma sexta-feira, nos confins de 2016. Num debate com várias mulheres, entre elas, Marielle.
Descongelo. É preciso descongelar e seguir em frente. É preciso continuar escavando a memória, denunciando memória, recriando memória. Com Marielle. Por Marielle, prossigo. Uma pergunta, desde a cartela inicial, não me sai da cabeça: cadê a cidade? O que é a cidade?
Escancaro a tampa do bueiro, e o fedor começa a espirrar na cara, transpirar do cimento. Como explicar à alguém que não tem uma buceta (vejamos bem, buceta aqui é um sinônimo para o ser mulher, que sim, penso, inclui a mulher trans) o que é andar na rua? A sensação de um beco mal iluminado, de um vagão cheio, de um transporte vazio? De “psius” e “gostosas”, do medo constante, da resistência exaustiva pelo simples fato de existir e andar em espaços públicos?
Arquitetura de gênero, história da formação das cidades, o papel social da mulher na rua ao longo dos tempos. Tudo isso me vem como golpes. É Cidade: Substantivo Feminino, monografia da arquiteta carioca Isabela Peccini, que começa a me fazer entender que história contam os prédios, as placas de nomes das ruas, os muros, os monumentos, as datas comemorativas.
Entender o idioma-cidade para gritar dentro dela, para ela. “Mas isso é só coisa da sua cabeça”, ouço. Mas a cidade é perigosa pra todo mundo”, ouço. “Ô lá em casa, que delícia ein!”, ouço. Como a arquitetura da cidade influencia no corpo das mulheres? A cidade enquanto produto externo, fálico, que nos cerceia.
Cito Stephanie Ribeiro, em matéria sobre nome das ruas como uma faceta do racismo, para a revista Capitolina: “É preciso fazer desaparecer tudo, ou quase tudo, que não devia ser visto.”
Começo a descobrir: há um projeto de cidade vigente, abrasador, vigiando, à espreita, e sempre a dar seus botes e mostrar seus dentes pontiagudos. Uma cidade-negócio, comercializável, que quer apagar história, qualquer história que não seja a oficial. A do homem branco. A do grande capital. A da cidade-espetáculo.
A cidade reflete as estruturas de poder que se dão dentro dela. Existe um modelo em arquitetura, falemos por favor de arquitetura, chamado “Modelo de Le Corbusier”. Le Corbusier, arquiteto e planejador urbano. O Modelo de Le Corbusier, tomado até hoje como referência para a proposição de espaços: um homem; um homem de 1,75m de altura; um homem de 1,75m, certamente europeu.
Voilà. Historicamente, o lugar de mulher nunca foi o da rua. Corrijo-me. Historicamente, o lugar da mulher branca nunca foi o da rua. Eis que entendo: existiam já e sempre dois tipos de mulheres: a mulher para casar, destinada eternamente à ficar em casa, e a mulher pobre, a mulher preta. Essa não, essa sempre teve como lugar-esperado a rua. Mas, de uma forma ou de outra, a relação entre o corpo-mulher e o corpo-cidade, sempre mediada, aprovada ou negada por cabeças de homens, foi desde o início uma relação de embate.
Lembro da aula de Arquitetura Brasileira, quando descobri que nas construções antigas havia um cômodo, sim, um cômodo, feito para que as mulheres esperassem, costurando, trancadas, escondidas, quando a casa recebesse visitas. Lembro que na transição feudalismo-capitalismo as mulheres tinham que passar suas propriedades para o nome dos maridos. Lembro inclusive que, até pouco tempo, as mulheres em si eram propriedades de seus maridos. Assim como o gado. Assim como as terras. Desterramentos. Lembro que tudo nosso foi constantemente apagado, deslembrado, lambido pra baixo do visível, esquecido.
Uma cidade que não tem, em sua estrutura de decisão, vivências diferentes, não pode se planejar para abarcar a diferença. Vivemos então, descubro, confirmo, em círculos, círculos de poder e exclusão. Círculos que continuam a tratar a mulher como um objeto público: a mulher-biquíni-no-outdoor; a mulher-estátua-nua-no-chafariz, a mulher ausente nos cargos de planejamento urbano, a mulher ausente nos nomes de ruas e monumentos, a mulher apagada da memória pública.
E ainda há tanto para se falar… A questão da dupla jornada, a questão da vivência da mulher pautada por suas obrigações domésticas, a questão da mulher trans, toda a retomada da memória feminina na cidade, os movimentos que já rolam na gringa em prol de uma memória urbana que retome mulheres importantes, os movimentos dos coletivos brasileiros, das ocupações artísticas, das intervenções…
Um espaço nunca é neutro, aprendi nos textos de minha amiga arquiteta. E respiro com um pouco mais de alívio e coragem: a cidade é viva, e está pulsante, em constante mutação. A cidade grita porque nós gritamos. E vamos gritar cada vez mais: a necessidade de incluir a mulher no pensar a cidade, a mulher como agente transformadora, a necessidade de nos ouvir. E a obrigação em nos respeitar. Continuaremos gritando, cada vez mais e mais alto, o nosso direito de existir e povoar não menos que cada canto, não menos que cada esquina a vibrar vida.
Gabriela Gaia Meirelles, cineasta e escritora, co-dirige o documentário independente AFETO, que fala sobre arquitetura, memória e ocupação feminina do espaço urbano. O filme está em processo de finalização e será lançado em 2018
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