A dinâmica do guru

Eles oferecem óleos essenciais para abrir caminhos e te dão um "tira a calça pra poder passar melhor"

14.07.2021  |  Por: Kiki Tohmé

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A dinâmica do guru

Idiota, imbecil, uma otária. Não é possível que isso tenha acontecido com você.

Você sabia de tudo. Tinha todas as informações porque ouve, lê, e se interessa diariamente pelas histórias das outras mulheres. Ninguém vai acreditar em você, porque você sabia de tudo, então, você pode muito bem estar inventando.

Não, não. Nem foi nada demais. Não teve violência física, nenhum soco, ele não te chutou, não te ameaçou, não te estuprou nem te matou. Ele foi gentil, você que está incomodada com uma situação que você mesma provocou.

Se fosse um homem desconhecido qualquer que circula aqui no sítio onde você está morando, vindo puxar papo numa quarta-feira de manhã, você não daria a menor bola, mas ele era um mero desconhecido com credenciais. Você confiou nele, você aceitou, meio tímida, meio sem graça, meio achando mágico, uai, ele é uma figura pública respeitada, um cara que se diz praticamente guru, que quer estar no posto de uma liderança espiritual. Ele te contou de obras de arte vendidas na Europa, pra um grande museu de São Paulo. Você confiou nele, afinal, não é toda quarta-feira de manhã que uma entidade indígena da floresta praticamente bate na sua porta mostrar seu “trabalho”. E foi você deixou que ele entrasse no seu quarto e permitiu que ele te massageasse com óleos essenciais da Amazônia.

Só que em algum momento dessa meia hora sem fim na qual ele encostava insistentemente nas suas partes íntimas e nos seus seios, quando o incômodo não dissipava e você achava tudo aquilo esquisito, você até abriu o olho e achou que bastava um olhar forte para que ele entendesse que não era pra continuar. Mas você não reagiu, nem falou nada, pelo contrário, quando ele perguntou com uma respiração ofegante se estava bom você ainda assentiu. Vai que é assim né? Vai que eles sabem lidar com o corpo nu, vai que essa respiração ofegante tem outro significado na cultura dele?

E aí, só depois que você ligou pra sua melhor amiga, fez terapia, conversou com a sua namorada, elas te contaram que o medo paralisa como mecanismo de defesa. Parece que o espírito sai do corpo mesmo e vai te proteger ali de fora. Como pode um passar de óleos ser tão violento?

São 10 horas da manhã, tem mulheres, crianças, e famílias ao nosso redor. Você não bebeu, ninguém colocou drogas na sua bebida, você não está sozinha numa rua escura, nem no centro da maior cidade do Brasil. Você está num lugar seguro. É um dia seguro.

Mas não, não é assim que os assédios acontecem, você sabia muito bem disso. Lembra do João de Deus, do Prem Baba, do Tadashi, dos mestres de ioga, do cara de Salvador? São todos assim, você conhecia essas histórias. Eles te oferecem uma coisa e te dão outra. Oferecem óleos essenciais para abrir caminhos e te dão um “tira a calça pra poder passar melhor”. Na delegacia você aprendeu que isso tem nome: violência sexual mediante fraude. Essa dinâmica do guru, que vai te convencendo, seduzindo, conduzindo, e quando as mulheres se dão conta, estão completamente encurraladas no meio de uma situação às vezes constrangedora, às vezes criminosa.

Agora que você contou para uma, duas, três mulheres, uma contou pra outra e esta outra disse que também precisava contar algo. Mais uma passou por isso. Peraí, vamos ligar pra outra. Ah, não. Mais uma também. E assim montamos um grupo no whatsapp, onde identificamos seis casos envolvendo este mesmo homem, praticamente, na mesma semana. Essas conexões são poderosas, nos dão força pra agir, denunciar, escrever, expor, expurgar. Ele mexeu com a pessoa errada. Quando descobri que outras mulheres passaram por isso eu até fiz uma busca rápida pra saber se tinha alguma denúncia envolvendo o nome dele*, mas nada. E achei que era necessário fazer a minha parte, trazer isso pro mundo, meu pequeno mundo, para que nenhuma outra de nós precise passar por isso.

São loucas. Estão inventando. Ninguém precisa nos dizer isso. É assim que todas as mulheres se sentem quando sofrem um abuso. Mas você pode ter a sorte de ter uma rede de apoio muito foda a sua volta, que te acolhe, sofre com você quando nem você tinha sofrido sua própria dor ainda. E, agora, você deseja que todas as mulheres possam encontrar conforto nas situações mais inacreditáveis que estão por acontecer ainda, infelizmente. E que o prestigiado ~guru~ encontre a punição devida. E que todas as pessoas que fazem um trabalho sério envolvendo cultura, arte, história e terapias sejam preservados, jamais punidos em nome de pessoas irresponsáveis, como no caso de abusadores que usam de uma fama, muitas vezes falsa, e acabam destruindo o caminho que tantos levaram anos sedimentando. Torço para que o caso siga adiante e outras mulheres, além das outras seis, também registrem suas denúncias. Sigamos alertas, o mundo ainda não é nosso, mas a nossa casa e os nossos corpos sempre serão.

* o único motivo para não denunciar o nome do abusador neste texto é em respeito às demais mulheres envolvidas neste caso, que ainda não se sentem prontas para expor e colocar suas vidas em xeque. Um caso de abuso não é ~apenas~ um abuso, envolve trabalho, sustento, famílias e ameaças, mas a polícia já foi informada.

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