A ficção depois do #MeToo
Sucesso no ano passado, o conto 'Cat Person' ganha um contraponto com 'Jailbait', publicado no último número da revista 'Granta'
20.09.2018 | Por: Maria Clara Drummond
Camila Novello | Piscina
Na última edição da revista Granta, lançada em agosto com o tema Generic Love Story, a escritora Ottessa Moshfegh relata seu encontro no final da adolescência com um escritor sessentão que era um grande cânone literário, que é denominado no conto de Rubert Dicks. Ela, 17 anos, prestes a entrar na faculdade, queria dicas sobre como escrever melhor. Ele queria sexo com uma ninfeta. Daí, a história se desenrola, a partir do ponto de vista dela, muitos anos depois.
O texto é quase um contraponto ao sucesso do ano passado, o conto Cat Person, publicado na The New Yorker, que explora os limites do consentimento. Em tempos de #MeToo, a ficção de Kristen Roupenian traduziu o sentimento de milhares de mulheres que finalmente estão com suas angústias relacionadas a sexo sendo ouvidas. Segundo a crítica do The Atlantic, Olga Khazan: “Cat Person relata os esforços das mulheres para administrar os sentimentos dos homens e a humilhação que ainda sofrem.” É, portanto, um conto que representa o zeitgeist feminista.
Em Jailbait, não há nada disso. Otessa vai à procura do escritor até conseguir um encontro com ele, a fim de que ele se torne seu tutor. Em suas palavras, o corpo dele vibrava com a carência de quem um dia já foi muito atraente e poderoso. Dessa forma, ela faz o seguinte cálculo: “Lembro-me de pensar que sua vitalidade minguante poderia ser usada a meu favor. Se eu conseguisse refletir sua grande força masculina, ele iria me querer por perto, se interessar mais pelo meu trabalho, me contar mais, me explicar mais, me esclarecer mais.” Então, ao se dirigir para a lixeira do parque onde eles estavam, Otessa curva-se para que o escritor tenha um bom ângulo da sua bunda.
No momento atual, em que as regras de conduta sexual estão sendo reescritas, há diversas narrativas e contranarrativas em disputa. Há quem diga, sobretudo homens, que existe nesses relatos femininos de assédio muito exagero e vitimização. Ora, mesmo que isso seja verdade, por que será? Talvez porque, ao longo dos séculos, a mulher foi desacreditada todas as vezes que tentou denunciar crimes sexuais. Muitas vezes chamavam-na de mentirosa e oportunista. Além da agressão sexual, a mulher precisa lidar com esse tipo de reação posterior à denúncia, e o culpado raramente era punido.
Eu diria que nos últimos anos as mulheres se sentiram empoderadas pelo direito de ser vítima. A quantidade de depoimentos na internet que expõem estupros, assédios e relacionamentos abusivos é sintoma de um sentimento de injustiça que estava entalado há anos na garganta dessas mulheres. E que agora finalmente encontra uma válvula de escape. Cat Person é um desenvolvimento desse caminho percorrido. As mulheres não querem mais impunidade em crimes sexuais, não querem mais se ver reféns de relacionamentos abusivos, e também não querem ser tratadas como uma boneca inflável na hora do sexo, como se fossem objeto de prazer descartável, e não um ser humano complexo com subjetividades.
Um amigo diz que Cat Person é uma moralização do que apenas foi um encontro ruim. Eu discordo. O meu problema com o conto é outro: no contexto de sexo casual, o homem é também objetificado pela mulher. Margot e Robert, personagens do conto, são a prova disso. Como não saiu satisfeita da noite que tiveram juntos, Margot nem se dá ao trabalho de encerrar aquele breve caso, não responde as mensagens de Robert, finge que não o vê quando o encontra num bar. Nem um nem outro mostram consideração com o parceirx.
O lugar de agência
Algumas mulheres se sentiram desconfortáveis com os caminhos abertos pelo #MeToo. A famigerada “carta das francesas” clama contra a vitimização e o puritanismo. As intelectuais signatárias do manifesto queixam-se por serem vistas como seres indefesos no lugar de indivíduos com autonomia e libido. O texto é altamente problemático porque versa sobre questões complexas de modo simplista, como a pulsão sexual que por natureza é ofensiva e selvagem, como bem nos ensinou escritores como Bataille, mas que mencionada en passant, sem maiores explicações, num manifesto tão difundido, soa, no mínimo, irresponsável.
A ficção é a melhor maneira de discutir essa polêmica e suas nuances por ser um universo fechado que existe apenas por determinada quantidade de páginas – ou minutos, caso seja veiculado na televisão ou cinema. Assim, podemos discutir o caso relatado sem o risco de deixar uma vítima sem amparo legal ou um inocente a ser acusado injustamente.
Em Jailbait, a personagem feminina assume esse lugar de agência mesmo com apenas 17 anos lidando com um homem famoso e mais velho. Como ela é menor de idade, Dicks diz brincando que não pode fazer sexo com ela por ser crime, mas deixa claro que a situação mudaria assim que ela atingisse a maioridade. Ela então aproveita essa vantagem para obter a masterclass que tanto deseja.
Nos encontros na casa de Rubert Dicks, não há diálogo, e sim um monólogo. A autoconsciência dela de que aquilo era uma questão de palco e plateia expõe para o leitor a vulnerabilidade daquele velho decadente com uma triste necessidade de ser admirado. Aquele homem em posição de poder não soa ameaçador, tanto que é ela quem constantemente o procura sem medo. A maneira com que ele não a enxerga como algo além de um pedaço de carne é um sintoma deprimente da dificuldade de conexão que atinge a tantos homens heterossexuais. Se olharmos mais fundo, além dos estereótipos, percebemos que a posição do escritor famoso é opressora para ele mesmo, também refém de padrões impostos pela sociedade.
No entanto, o olhar empático que a narradora tem diante do homem à sua frente também é sua arma de manipulação. Assim que ela completa 18 anos, Dicks vem cobrar a sua parte do que imaginou ser um acordo, o sexo. Ao perceber que ela está relutante, ele tenta convencê-la, e assim debatem sobre o tema por horas. “Foram as horas mais desafiantes em termos de retórica que já experimentei na vida. Eu estava viva e engajada, observando cuidadosa minha linguagem corporal, com discurso arrogante e sedutor.” Na ânsia de dormir com ela, o escritor estava finalmente prestando atenção no que ela tinha a dizer.
No último encontro, Dicks finalmente corrige os textos que lhe foram entregues, como ela desejava. Mas, em vez de cumprir sua parte daquele acordo estabelecido em entrelinhas bastante óbvias, ela sai sem pagar, deixando-o enraivecido.
Ottessa Moshfegh, a personagem ou a escritora, conclui: “Aos 36 anos, sou fluente em irreverência e sarcasmo. Isso me empoderou para ser egoísta e tirar qualquer ilusão que vou conseguir o que quero apenas ‘sendo legal’. É preciso ser um tanto mau comportado para escrever bem numa sociedade que é tão confortável com mediocridades palatáveis. Esse é o tipo de escritora que eu sempre quis ser: alguém que causa confusão. Não posso culpar Rupert Dicks ou qualquer outra pessoa por querer o mesmo.” E assim, a anti-heroína do conto emerge como senhora de si, representante desse outro feminismo que clama por agência, complexidade moral, e uma bem-vinda mistura de sexualidade com ambição.
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