A maternidade na quarentena
Que as mães confinadas com seus filhos e filhas estão exaustas, sobrecarregadas e preocupadas, nós já sabemos. Mulheres de diferentes contextos compartilham as lições que estão aprendendo na pandemia sobre o papel de genitora, a família e si mesmas
08.05.2020 | Por: Carolina De Marchi
O celular vibra. É uma notificação do grupo do trabalho no WhatsApp. Será que é urgente? Outro momento crucial pede atenção na sala, onde dois pequenos piratas gritam que o navio está sendo invadido e deveríamos reagir. Enquanto isso, já seria hora de checar se a berinjela está queimando no forno. E se a máscara facial pode ser enxaguada. Ajudar o marido a arrumar a tal prateleira, então, pode ficar para mais tarde.
– Manhê! Manhê! Vem! Eles estão chegando!
A cena é familiar? Poderia ser uma manhã na casa de Camila Noguez, psicóloga, há mais de 45 dias de quarentena em seu apartamento em Porto Alegre com os dois filhos pequenos (João Guayí, 5, e Teresa, 3) e o marido, Alex. Ela não é a única a lidar com o nosso já conhecido malabarismo de multitarefas que se intensificou ainda mais na atual realidade “sem precedentes”. Entre cuidados com a casa, cuidado de si, tempo de qualidade com os filhos, trabalho e relacionamento, definir prioridades é tarefa complexa. Mulheres, especialmente mães, estão sobrecarregadas em meio à pandemia.
Tanto mães que já trabalhavam em casa ou mães que trabalhavam fora, mães solteiras ou casadas, mães no puerpério ou que já têm filhos crescidinhos. Tudo ficou mais embaralhado com a convivência constante sob o mesmo teto. Mas o confinamento também está trazendo uma experiência de maternidade inédita: nunca a conexão com os filhos foi tão intensa. Para além do cansaço, o que as mães estão vivendo?
Lua Barros, educadora parental e mãe de João, Irene, Joaquim e Teresa, recorda que as famílias de maneira geral estavam desconectadas das crianças, adotando uma série de rotinas e atividades como forma de distração. Mais do que um convite, a pandemia veio como uma ordem, cortando todos esses recursos e subterfúgios, nos empurrando a encarar isso que é “na verdade muito simples: estar com as crianças. É natural, no início, passarmos por um processo de negação, de raiva, de frustração, de querer a vida de antes, de ter tempo para se preparar. Como não é possível, um reaprender familiar está em curso”, diz. E ele não precisa ser estressante ou pesado, pelo contrário. Como mãe, Lua admite que também se debateu no começo da quarentena. “Depois, eu senti muito forte um convite de quietar. De não me cobrar tanto, não cobrar tanto das crianças a organização e tarefas da casa. Precisamos entender o fluxo como algo mais leve, mais possível.” Ela mora atualmente com os filhos e o marido, Pedro, num sítio no interior de Brasília.
Para Camila, isso já está bem claro, no convite diário à brincadeira. “É curioso, porque a brincadeira dos adultos é outra: o pensar. É grudar o olho no celular, ler um livro, fazer coisas que só adultos conseguem fazer, como por exemplo trocar uma prateleira.” Ao mesmo tempo, nosso convite às crianças é para que adentrem o mundo adulto, isto é, o que Camila chama de constantes “convocações civilizatórias”: senta direito, come, não bate! Ela, agora, está aceitando mais entrar na brincadeira dos pequenos. “Tem sido menos temerário e mais leve, até porque combinamos no dia anterior.” E funciona mesmo? “Sim. Hoje, por exemplo, tem um pedido do Guayí que é se vestir de papai. E a Teresa pediu pra gente brincar de super-heróis, com enredo, apetrechos e tudo. Eu estou preparada para isso hoje.”
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Definir o momento de cada atividade é extremamente importante, claro. A dinâmica presença/ausência, disponibilidade/indisponibilidade dos pais precisa agir como um movimento quase de respiração. Natural, mas também zeloso. Especialmente se a mãe segue trabalhando de casa, como é o caso de Camila. “O trabalho funciona como esse pêndulo. Às vezes as coisas se misturam, fica confuso, mas a gente teve que construir esse espaço aqui em casa, juntos.”
Se já é desafiador para um casal, que dirá para uma mãe solo. Cristina Bertoni Machado, bióloga, consultora de amamentação, mãe de Henrique (11) e Julia (7), também segue trabalhando de casa na quarentena. Segundo ela, os momentos de solidão e individualidade são importantes tanto para ela quanto para as crianças. “Não precisamos ser recreacionistas e educadoras de plantão. Não somos tão indispensáveis assim – eles também ficam bem sozinhos!” A saída de cena é vital para a autonomia, criatividade e desenvolvimento cognitivo das crianças também, de acordo com Cristina. Lógico que, com prudência e responsabilidade, sempre. É uma oportunidade de testar limites. “Eu aprendi a olhar para eles mais como seres humanos e não apenas como meus filhos”, conta. Mesmo sendo mãe solo, ela não sente tanta falta de ajuda, pois diz que já está acostumada.
Em seu livro Criar Filhos no Século XXI (Editora Contexto, 2019), Vera Iaconelli reforça, no entanto, que toda a sociedade é responsável pela criação das crianças e que precisamos pensar em formas coletivas desse cuidado. “Hoje mulheres trabalham e são chefes de família, principalmente nas famílias de classe menos favorecidas. Ou seja, trabalham o dia inteiro e ainda se cobra delas a incumbência de ser a única responsável pelo cuidado com os filhos.”
Essa carga mental e a responsabilidade acumulada atropelavam a relação de Edinalides Santos Dias e sua filha Maria Eduarda, de 11 anos. Dina, como prefere ser chamada, tinha uma rotina extremamente corrida – entre trabalhos como diarista, outros bicos e os estudos para tentar cursar Medicina, a intimidade com a filha ficava em segundo plano. A pandemia fez com que elas se unissem como nunca antes (ambas estão na Bahia, cuidando da mãe de Dina, que enfrenta problemas de saúde). “Esse período tem sido revelador e bonito. Eu escutei pra valer, sabe? Descobri que a Duda escreve poesia desde os 5 anos, por exemplo. Até o bullying que ela sofria na escola eu não sabia.” No início bateu culpa e houve tentativa de justificar o distanciamento e a ausência – que Dina classifica como negligência sua – de diversas maneiras. “Mas depois rolaram conversas muito importantes, tanto com a Duda quanto com Roberto [seu outro filho de 21 anos, que já é casado]. No meio disso tudo surgiu algo bom e ainda me tornei avó.” Dina ainda não pode conhecer o netinho pessoalmente, só o viu de longe, no hospital, e por vídeo-chamada.
Nós todos precisamos de menos coisas, menos funções, menos atividades. As crianças precisam mais da gente. Que a gente não perca isso de vista: quando nos damos a elas emocionalmente e fisicamente sem muitas amarras, tudo flui
E se os números de morte ainda inundam as notícias, a vida segue seu rumo. Diariamente, milhares de mulheres também dão à luz. Como Alice De Marchi, psicóloga e professora universitária, que passou as últimas semanas de gravidez confinada no apartamento no Rio de Janeiro com o companheiro, Danichi, e há duas semanas curte a chegada do João. “De certa maneira, o puerpério é bem parecido com uma quarentena. Você fica em casa o tempo todo com o bebê, não pode fazer quase nada. Sei que é meio egoísta pensar assim, mas pelo menos com a quarentena, eu sei que não estou perdendo nada, já que estamos todos confinados”, diz, entre risos.
Brincadeiras à parte, ela relata que casal teve que replanejar tudo, considerando que não poderiam contar com a rede de apoio de amigos e familiares logo após o nascimento. “Senti uma conexão enorme com esse ato de me tornar mãe, ter noção maior do que é urgente, o que é essencial. Junto veio também uma dimensão de saúde ainda maior. Tivemos que ser estratégicos e muito organizados.” Apesar da apreensão, ela enxerga o lado positivo do isolamento, que intensifica a conexão com o bebê. “Eu inclusive gostei de ficar completamente sozinha no parto em dados momentos. É um paradoxo: por sermos humanos, a gente tem esse lado social que adoraria ter visitas e ajuda, mas também tem esse instinto quase animal, da idade das cavernas, uma coisa meio passarinho no ninho”, reflete.
A quarentena oferece uma oportunidade única de convivência com o pai também. “Claro que isso vai depender muito de casal para casal, mas pra mim esta sendo ótimo, afinal toda mulher deseja essa participação (e não só ajuda) do homem.” Segundo ela, é um exercício importante para as mães também, de relaxar e confiar mais no pai nas tarefas com o bebê.
Mariana De Luca, publicitária e pesquisadora de comportamento, talvez nos ofereça um olhar otimista de um futuro próximo: a vida pós-isolamento. Ela mora em Barcelona, na Espanha, com o marido, Felipe, e a filha, Lola, de 6 anos. “Esses meses fizeram com que eu olhasse muito para mim, entendesse o meu papel como mãe e mulher, não só em comparação ao meu companheiro”, conta. “A quarentena foi um terremoto – que está acabando aqui. A pior parte já passou e eu me sinto como uma flor. Muitas coisas desabrocharam em mim.” Ela também se deu conta de que a filha adorou passar mais tempo com eles e ensinou muito sobre a comunicação entre o casal. Outra ficha que caiu foi a do autocuidado. “De verdade. Tipo: deixar o YouTube antes de dormir e meditar, ou fazer um sexo gostoso, ou caminhar e correr na rua. Estou mais atenta a mim, ao meu redor.”
Tomara, então, que a gente não se distancie dessas lições quando tudo isso passar. “Nós todos precisamos de menos coisas, menos funções, menos atividades. As crianças precisam mais da gente. Que a gente não perca isso de vista: quando nos damos a elas emocionalmente e fisicamente sem muitas amarras, tudo flui”, é o desejo de Lua Barros. “E é muito bonito ver isso acontecer nas famílias.”
Carolina De Marchi é jornalista, gestora de projetos, produtora cultural e viajeira latino-americana. Aprendiz de poeta, amante de sotaques, pessoas e boas histórias. Poderia ser cônsul ou trabalhar no circo
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