A medida certa é o respeito
Como Recife entrou na vanguarda antigordofobia ao garantir, por meio de leis, acessibilidade para acolher e servir pessoas gordas
21.03.2022 | Por: Mariana Caldas
Deu no New York Times: “Nesta metrópole à beira-mar no Nordeste do Brasil, as escolas estão comprando carteiras grandes, os hospitais estão comprando leitos e máquinas de ressonância magnética maiores, e os teatros do centro histórico estão oferecendo assentos mais largos.” Recife foi oficialmente e internacionalmente reconhecida como a cidade que está na vanguarda quando o assunto é respeito e acolhimento para os corpos gordos.
“É uma grande conquista para entendermos que precisamos discutir a pauta com a devida seriedade. Colocaram tanto na cabeça das pessoas que falar sobre corpos gordos é falar sobre beleza e saúde que eu acredito que foi construída uma limitação quando se refere ao tema. Beleza é, para nós, uma pauta ultrapassada, nossa autoestima já está muito bem estabelecida e agora a gente precisa de políticas públicas que garantam o direito de uma digna existência social”, explica Aline Sales, que faz parte do coletivo Bonita de Corpo e foi uma das ativistas que ajudaram a criar duas leis antigordofobia que foram escritas pela vereadora Cida Perosa e sancionadas pelo prefeito João Campos, em 2021. Foi instituído o Dia Municipal da Luta Contra Gordofobia, 10 de setembro, e criado um sistema de medidas para garantir um ensino livre de preconceito e discriminação para pessoas gordas, que além de incluir o tema na educação pública da cidade por meio de uma formação dos docentes também prevê a compra de cadeiras para alunos gordos e adequação dos espaços comuns para quem é obeso.
Imagina viver em um mundo que simplesmente não foi projetado para você. Essa é a realidade das mais de 2 bilhões de pessoas no planeta, e de mais de 41 milhões de brasileiros. Simplesmente nada foi feito ou pensado para eles. As cadeiras, as roupas, o sistema de saúde, os banheiros, o ônibus, o avião. Pegar um voo e não conseguir fechar o cinto, não querer ir conhecer um restaurante novo por não saber se vai caber na cadeira, não poder ir ao cinema, ao teatro, ser maltratado nas consultas médicas, ter que ouvir barbaridades na rua, piadinhas em qualquer lugar, ou ser constantemente preterido na hora de concorrer por uma vaga de trabalho é uma constante na vida das pessoas gordas no Brasil e no mundo.
“Temos uma estrutura que oprime as pessoas. A gordofobia é estrutural, não é sobre autoestima. Eu continuo não cabendo na cadeira, não consigo passar na catraca, não entro nas roupas ditas plus size. A gordofobia te priva, tira seu acesso, e isso é uma opressão. A gente precisa ir além desse discurso [de autoestima]”, desenhou a modelo plus size Bia Gremion durante uma live com Rita Carreira no Instagram. “Às vezes deixo de ir a lugares que não conheço por medo de o assento não me comportar. Não vou mais ao cinema da minha cidade porque a poltrona não me cabe e precisei gravar os modelos de ônibus que tenham roletas maiores, pois eu já fiquei agarrada em uma e foi muito vergonhoso e constrangedor”, conta a estudante Isabelle do Prado.
Por mais que as recentes leis antigordofobia tenham sido aprovadas pela prefeitura de Recife e comecem a ecoar pelo mundo, a realidade está muito longe do ideal. “Acesso é vida e todos usufruem dele, não deve existir uma política pública específica para determinados grupos, o Estado precisa atender a todos”, explica Mariana Reis, que estuda o tema da acessibilidade. Estudos comprovam que crianças e adolescentes que são vítimas de bullying por seu sobrepeso estão mais propensos a sofrer de ansiedade, baixa autoestima, estresse, isolamento, compulsão alimentar e depressão do que os adolescentes magros. No caso dos adultos, o preconceito também é um fator que prejudica não só a saúde mental, mas também as oportunidades de trabalho. Tudo isso sem contar o fato de que pessoas gordas são ainda mais negligenciadas pelos profissionais de saúde, tanto na rede pública quanto privada.
Como bem afirmou o New York Times, o movimento #BodyPositive no Brasil é um dos mais fortes do mundo. As big girls brasileiras estão mais empoderadas do que nunca, vivendo o amor e a aceitação dos seus corpos de dentro para fora, todo dia mais, e são um exemplo de auto estima inclusive para as mulheres magras, que também sofrem com os padrões estéticos absurdos do país do carnaval. São elas as grandes agentes da mudança, inclusive política, no país e no mundo hoje. E o recado é claro: nem toda mulher gorda quer emagrecer. E principalmente: obesidade não é doença.
A ciência comprova. Parece que nada é mais ultrapassado ultimamente do que a ideia de que um corpo gordo não pode ser saudável. Muito pelo contrário, pessoas obesas podem sim ter hábitos mais saudáveis do que pessoas magras e um recente estudo publicado pela revista científica Science MAG afirma que nem sempre a obesidade significa problemas de saúde. “Há muitas pessoas classificadas como obesas e que não têm nenhum sinal de doença e vivem uma vida longa e saudável”, explica o fisiologista Lindo Bacon, autor e defensor da positividade corporal e professor da Universidade da Califórnia.
Como muito bem resumiu a prefeitura de Recife em seu comunicado oficial: “As leis representam muito, são passos importantes, e a gente vai continuar o debate sobre o assunto até que todos os corpos sejam livres e respeitados.” A grande questão aqui é que não importa se uma pessoa é gorda, magra, alta, baixa, feliz, triste, saudável ou doente. Todo mundo tem o direito de existir. Todo mundo merece respeito. Todo mundo merece viver o mundo e a vida com dignidade e tranquilidade. O acesso para pessoas gordas é urgente e precisa sim ser um problema de todo mundo.
Mariana Caldas, produtora de conteúdo da Hysteria, é diretora, fotógrafa e jornalista. Seu trabalho autoral investiga e revela a natureza selvagem que vem de dentro
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