A menos falada das liberdades individuais sobre o próprio corpo: o direito à eutanásia

Holanda, Bélgica, Suíça e Alemanha já permitem o suicídio assistido. Portugal decidiu que não entrará para o time

30.05.2018  |  Por: Maria Clara Drummond

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A menos falada das liberdades individuais sobre o próprio corpo: o direito à eutanásia

Singh Bean

Em maio de 2018, a Irlanda legalizou o aborto, enquanto a despenalização da eutanásia se encontrava no epicentro do debate em Portugal – ambos os países extremamente católicos. Os dois temas dizem a respeito às liberdades individuais, ao direito em relação ao próprio corpo e à concepção burguesa de vida e morte. Da mesma forma, tangem uma questão de saúde pública e redução de danos. Mas, enquanto o aborto ocupa um lugar de proeminência no debate público, a eutanásia e o suicídio assistido seguem como um tema esquecido mesmo entre os mais progressistas.

O movimento pelo direito à morte digna ganhou força num momento em que a sociedade enfrentava um cada vez maior envelhecimento da população. Não apenas isso, mas aprendia a lidar com um novo status biológico, tão distante da vida quanto da morte: 70% das pessoas com mais de 80 anos sofrem de incapacidades crônicas e 36% têm perda cognitiva de moderada a grave. No entanto, estudos suíços e americanos mostram que as leis foram motivadas não pelos mais velhos, e sim pelo desejo dos jovens de assumir controle sobre a própria vida, e mais especificamente sobre a grande questão pela qual não temos nenhum poder, a finitude.

Normalmente, a eutanásia só é vista como opção viável em relação a casos extremos, tanto na legislação dos poucos lugares que a permitem quanto na opinião pública e na representação no cinema, como nos filmes Menina de Ouro e Mar Adentro, ambos de 2005. Mas a Bélgica, segundo país a legalizar o procedimento, em 2002, logo após a Holanda, permite o recurso mesmo que o paciente não tenha uma doença terminal, inclusive em casos menos graves como autismo, anorexia, cegueira, transtorno maníaco-depressivo e transtorno borderline. Etienne Vermeersch – um dos mais influentes intelectuais e filósofos da parte flamenga da Bélgica – declarou acerca do tema que o país se encontra, eticamente, no topo do mundo.

O ‘não’ à despenalização da eutanásia ganhou por muito pouco – cerca de dez votos de diferença com cerca de 130 parlamentares

Em 2013, 13% dos pacientes belgas que foram eutanasiados não sofriam de doenças terminais. Políticos seculares como liberais, socialistas e ambientalistas são a maioria do parlamento em relação aos democratas cristãos, e o termo “autodeterminação” foi repetido 97 vezes durante a sessão do senado que decidiu a lei. A laicidade é um imperativo no país: há aulas de “ética não-confessional” no currículo das escolas públicas, enfatizando autonomia, liberdade de pensamento e ética baseada na ciência e não na religião; e desde 1981, o governo dá direito a “conselheiros humanistas” – uma espécie de clero laico que serve como um guia moral em hospitais e presídios.

O exemplo belga mexe com paradigmas porque tira a conotação trágica do suicídio ao localizá-lo numa clínica onde o médico aplica uma injeção letal. A eutanásia vira uma questão de puro e simples livre arbítrio, sem interferência de questões religiosas, ou próprias de um sistema de valores que faz sentido não porque é absoluto, e sim porque é algo próprio da cultura judaico-cristã. Afinal, em tantas outras sociedades a morte não é tratada como um tema tabu.

Em 2014, Brittany Maynard ganhou a atenção da mídia por anunciar nas redes sociais seu suicídio assistido. A jovem de 30 anos tinha um tumor no cérebro, e escolheu se mudar da sua cidade natal, São Francisco, para Oregon, estado onde a lei permite o procedimento para doentes terminais. Durante suas últimas aparições, Maynard não se mostrava passiva ou vulnerável, e se dedicou a uma campanha para que outros que se veem diante de uma morte iminente pudessem usufruir do mesmo direito, o que a tornou praticamente uma garota-propaganda para mais leis do tipo. Ela era voluntária na ONG Compassion and Choices, dedicada ao direito pela morte digna, e em sua carta final diz:”Hoje é o dia que escolhi partir com dignidade diante da minha doença terminal. Eu morrerei no meu quarto, e ao meu lado estarão meu marido, minha mãe, meu padrasto e minha melhor amiga, e partirei em paz. Não consigo imaginar como alguém pode querer roubar de qualquer pessoa esse direito.”

Outra perspectiva do mesmo drama é mostrada pelo jornalista americano Michael Wolff – que recentemente ganhou notoriedade mundial ao lançar o polêmico livro Fogo e Fúria, sobre a presidência Trump. Num ensaio escrito para a New York Magazine, e traduzido por aqui para a piauí em 2012, ele versa sobre as dificuldades de cuidar de sua mãe, que na época tinha 86 anos, não podia andar nem falar, e havia perdido a memória de curto prazo. Wolff confessa a esmagadora culpa de mantê-la viva naquelas condições. E se pergunta: quem consegue aceitar um sofrimento desses? Quem pode, em sã consciência, contribuir com isso? É para isso que queremos que todo mundo pare de fumar e adquira hábitos saudáveis?

Wolff também mostra um argumento menos simpático à causa mas muito realista: mesmo tendo feito um seguro de assistência continuada na velhice, seus gastos médicos mensais eram de US$ 17 mil. E quem não tem esse dinheiro para cuidar de seus progenitores com o devido zelo?

Os quatro projetos de lei que foram a votação na Câmara portuguesa se aplicariam aos casos de Wolff e Maynard: a morte assistida seria admissível em casos de sofrimento físico e psicológico intenso e doença incurável e fatal, a partir da decisão do próprio paciente, que deverá estar consciente do processo. O “não” à despenalização da eutanásia ganhou por muito pouco – cerca de dez votos de diferença com cerca de 230 parlamentares.  Nas ruas, cartazes como “sou pela vida”, “em democracia não se mata”, e “liberdade tem limites”. Ao que parece, o iluminismo belga ainda está longe de ganhar o mundo.

1 Comentários

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Uma resposta para “A menos falada das liberdades individuais sobre o próprio corpo: o direito à eutanásia”

  1. Tharsila disse:

    Texto excelente e importantíssimo. Obrigada por um texto claro e informativo sobre uma questão tão negligenciada. Vou compartilhar!

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