A nova podosfera

Presença feminina começa a mexer com o cenário de podcasts no Brasil, onde elas ainda são 15% da audiência e apenas 11% dos programas têm mulheres na equipe

07.11.2018  |  Por: Gaia Passarelli

image
A nova podosfera

A gente sabe que podcast não é novidade. Surgido na década passada como conteúdo para o iPod da Apple (lembra dele?), era uma espécie de programa de rádio para fazer download no aparelhinho e ouvir a hora que quiser. Continua sendo algo por aí, um tipo de rádio on demand que a gente liga para tornar menos maçantes as tarefas domésticas, ter companhia no trajeto entre casa e trabalho ou distrair na academia.

Só que até pouco tempo atrás podcast foi uma coisa meio de menino, fato medido pela baixa representatividade feminina nas listas de podcasts mais ouvidos de plataformas como iTunes e Spotify e comprovado pela recente divulgação da pesquisa 2018 da Associação Brasileira de Podcasters, ou ABPod.

Fundada em 2005, a ABPodrealizou três pesquisas com ouvintes de podcasts. Na primeira, em 2008, teve pouco mais de 400 respostas e indicava participação de 9,1% de mulheres. Corta para 2018 e as mais de 23.000 respostas ainda indicam baixa adesão da audiência feminina: 15,3%. É pouquíssimo e o mesmo se pode dizer da presença de podcasters: dos cerca de 1.300 podcasts feitos no Brasil, apenas 11% dizem ter mulheres na equipe. Dos dez programas mais citados pela audiência, apenas um é feito por mulheres.

Mas essa bolha está mudando.

As mulheres estão criando conteúdo para sanar a necessidade de escutar outras mulheres”, analisa Ira Croft, criadora e host do podcast Ponto G, criado em 2016 e que fala sobre mulheres marcantes da História. Para Ira, que ouve e produz podcasts desde 2009 e é uma das criadoras da hashtag #MulheresPodcasters, os programas não precisam estar dentro de assuntos considerados femininos para ter importância. “Qualquer programa feito por mulheres pode ser relevante para o público, seja sobre entretenimento, ciência, política, esportes etc. O que queremos é incentivar o crescimento dessa mídia e a participação feminina na mesma proporção.”

O podcast é uma mídia nova e seu desenvolvimento foi prioritariamente masculino. Mesmo com a participação feminina, por diversos fatores o perfil do ouvinte de podcast ainda permanece em sua maioria masculino, e quem responde à pesquisa são os ouvintes habituais

Ira Croft, do Ponto G

Rumo ao quarto aniversário e com cerca de 120 mil ouvintes por episódio, o Mamilos Podcast faz parte das famílias B9 e Hysteria (veja outros podcasts da casa na lista no final da matéria) e é o único programa feito por mulheres a figurar nas listas de podcasts mais conhecidos do Brasil. Semanal, o Mamilos faz o que suas criadoras Cris Bartis e Juliana Wallauer chamam de jornalismo de peito aberto, se comprometendo a mostrar diversos lados de assuntos que precisam de análise como imunização coletiva, a greve de caminhoneiros ou as taxas de suicídio entre adolescentes.

Para Juliana, a mudança vem acontecendo na esteira de um aumento no alcance do formato, justificada pela democratização do acesso e pela demanda por mídias não interruptivas. Ela também destaca uma crescente diversidade e qualidade de conteúdo: “Aqui temos um autêntico dilema de Tostines, vende mais porque é fresquinho ou é fresquinho porque vende mais? Quantos ouvintes em potencial não tinha tentado escutar e desistido porque não se identificavam com o que a podosfera oferecia? Até pouco tempo atrás a maior parte do conteúdo tinha a mesma fórmula e era bastante amadora,” analisa.

O formato a que Juliana se refere é o “mesacast”, em que um elenco fixo com participação de convidados debate algum assunto proposto. Nos EUA, onde o podcast nasceu, o formato está bastante ligado à cultura de rádio e existem programas de enorme audiência com formatos que vão de consultório profissional a narrativas ficcionais, passando por séries dedicadas à investigação criminal, entrevistas com figuras do entretenimento e e análise política. Mas no Brasil impera o formato “debate entre amigos”, a roda de conversa com jeito de mesinha de bar, opiniões superficiais, referências a memes e gente concordando quase todo o tempo.

Parte do sucesso do Mamilos se deve a fugir desse esquema, apostando numa pesquisa profunda (não raro o roteiro do programa tem mais de 40 páginas) e em dados que uma equipe de pauta coletiva reúne de reportagens, livros, entrevistas e estudos.

Quem também aposta em outro formato é a Amanda Ramalho, que ficou conhecida nacionalmente como parte da bancada do Pânico, dona de canal no YouTube e que desde fins de julho deste ano fala sobre saúde mental com especialistas no Esquizofrenóias, uma série realizada pela produtora de podcasts Half Deaf. A cada semana Amanda recebe um convidado para falar longamente sobre temas como transtorno bipolar afetivo, tiques nervosos, depressão e autismo. Ela conta que tem suporte da equipe da produtora, mas que “a maioria dos convidados em pauto e agendo sozinha e a maior dificuldade é encontrar pessoas que topem falar desses temas que são muito delicados, porque a ideia é deixar esse assuntos mais leves. Eles parecem muito obscuros justamente pela falta de espaços como o Esquizofrenóias.”

O Esquizofrenóias tem 44% de mulheres na audiência e no Instagram eu sei que essa porcentagem é de 51%. Acredito que a medida em que programas tem mais mulheres no comando, mais mulheres virão

 Amanda Ramanho, do Esquizofrenóias

A mídia podcast também atrai quem ouve e faz rádio, caso da jornalista Paula Scarpin, diretora de rádio da revista Piauí, que tem dois programas: o Foro de Teresina, de noticiário político, e o Maria Vai Com as Outras, que entrevista mulheres que trabalham em diferentes áreas como o Judiciário, ciências, esportes e política. “É bem planejadinho,” conta Paula. “Em 2018 fizemos dez episódios com entrevistadas que levantamos como em qualquer reportagem, perguntando para conhecidos, pesquisando em jornais e plataforma Lattes etc.” Para Branca Vianna, que apresenta o Maria Vai Com As Outras, “o movimento feminista atual, muito vibrante, jovem, forte e com um grande futuro pela frente, concentra-se em temas fundamentais ara a vida das mulheres, como violência, assédio e direitos reprodutivos. Achamos importante acrescentar mais um tema: a mulher no mercado de trabalho. Hoje 40% dos lares no Brasil são chefiados por mulheres que ganham cerca de 25% a menos que os homens. Só isso já torna o tema importante para a distribuição de renda e a riqueza do país.”

A pauta feminista teve crescimento importante nos últimos dois anos, o que acabou se refletindo em todos os meios mas principalmente nos de produção mais independente como canais no YouTube e podcasts 

Paula Scarpin, diretora de rádio da revista Piauí

Quem não conta com estúdio, editor de som, direção de arte e bom alcance nas redes sociais também consegue fazer seu próprio podcast. A flexibilidade é talvez o maior trunfo da mídia e é possível botar no ar programas gravados com celular, entrevistas feitas via WhatsApp, editadas em softwares como Garage Band ou Audacity (ambos gratuitos) e disponibilizadas em serviços gratuitos como o Soundcloud. Por isso, quem acompanha a podosfera nota um aumento considerável de mulheres podcasters em 2018. Duas iniciativas recentes são exemplo dessa movimentação: os podcasts Mulheres que Escrevem e Despautada.

O primeiro é cria do coletivo de mesmo nome, formado por escritoras e acadêmicas com o objetivo de promover a literatura feita hoje no Brasil. Seane Melo, escritora e jornalista, autora de Ao Vivo em Goiânia: Quatro Contos de Patroa, entrou para o coletivo em fins de 2017 e levou em frente a ideia de um canal de podcasts com narrativas de não-ficção: “Como ouvinte eu sentia falta de podcasts de literatura que fugissem do formato entrevista e debate e, inspirada pelo podcast da The New Yorker Fiction, pensei que esse seria o formato ideal para o Mulheres que Escrevem.” Como no programa gringo, o resultado aqui é um programa semanal em que uma escritora convidada lê um conto publicado na revista e depois conversa sobre o texto. O podcast Mulheres que Escrevem está no ar desde maio deste ano, e Seane conta que precisou perder o medo de gravar com o equipamento que estivesse disponível. “Tive que desmistificar essa idéia de que seria necessário gravar em estúdio,” conta. Hoje o Mulheres que Escrevem é gravado em computadores pessoais e conta com participações e depoimentos à distância.

Já o Despautada é cria da jornalista e fotógrafa Fernanda Eggers, paraibana de João Pessoa, “apaixonada por podcasts”, que resolveu criar um para chamar de seu justamente após notar pouca opção de programas feitos por mulheres. “Descobri a hashtag #MulheresPodcasters e encontrei mulheres falando sobre vários assuntos diferentes. Como já tinha alguma experiência com captação e edição de áudio por causa da faculdade de jornalismo, fiz do Despautada meu laboratório”, ela diz. Fernanda é exemplo de mulher que faz podcast de forma totalmente autoral e independente. “As pautas são basicamente o que me der vontade, sempre escolho um produto cultural como livro, filme ou história em quadrinhos e falo sobre isso.” Ela conta que a principal dificuldade é com hospedagem e distribuição, mas aponta que trabalhar sozinha “dá toda a liberdade do mundo, do planejamento da pauta até a publicação final”.

As mulheres têm uma rotina atribulada, às vezes dão conta de trabalho fora e dentro de casa, então é comum que a gente sinta que não existe espaço para coisas novas. Espero que mais mulheres descubram podcasts, até porque tornam as tarefas rotineiras mais divertidas, enquanto não alcançamos a paridade na divisão de responsabilidades

Fernanda Eggers, do Despautadas

Domenica Mendes, 30 anos, de São Carlos, interior paulista, é uma das criadoras da campanha O Podcast é Delas, que a cada mês de março incentiva a participação de mulheres em programas já existentes ou a criação de novos. “A campanha foi criada quando, em uma conversa, contei como me incomodava quando ouvia programas onde as mulheres eram cortadas pelos participantes homens e a quantidade de vezes em que eles reiteravam as falas das mulheres”, explica. Aproveitando que o mês de março é o de maior atenção às causas das mulheres, a campanha propôs que podcasts já existentes convidassem mulheres para gravar um ou mais episódios. Em 2017, conseguiram cerca de 50 programas na campanha e criaram em seguida o site O Podcast É Delas (ou OPED), um canal seguro e viável para que mulheres encontrem informação e espaço para criar e hospedar os próprios podcasts.

A proposta do OPED é simples: toda e qualquer mulher que queira fazer podcast pode enviar um episódio já pronto que será publicado no nosso servidor e divulgado em nosso site e mídias, sem nenhum custo. Quem não sabe como gravar ou editar pode aprender conosco. Podemos acompanhar a gravação ou até mesmo fornecer a edição. É a forma que encontramos de incentivar mulheres a começar ou manter seus projetos, fornecendo alternativas viáveis para a parte técnica, que costuma ser um dos fatores que desincentivam quem quer entrar na mídia,” explica Domenica. Um dos podcasts dentro da iniciativa OPED é o Quarta Parede, programa em formato debate que analisa personagens da ficção literária.

Conforme a mídia podcast vai se tornando acessível, é natural que mais pessoas queiram participar. Campanhas como #OPodcastÉDelas vêm para fortalecer e incentivar a participação de mais mulheres na mídia. O próximo passo é organizar para receber conteúdo de todas as mulheres que quiserem vir para a mídia, trabalhar para trazer mulheres trans e, claro, organizar a campanha do ano que vem 

Domenica Mendes, criadora da campanha O Podcast é Delas

Desde a estreia, em novembro de 2017, a plataforma a Hysteria incentiva a produção feminina de conteúdo audiovisual e traz podcasts na grade fixa. A diretora editorial Isabel De Luca comenta: “Os programas Rascunhos Esquecidos de Uma Caixa sem Saída e Grampos Vazados são feitos na casa, já Mamilos, Mathildas, Conexão Feminista e Baseado em Fatos Surreais entram como uma segunda janela para programas criados externamente, um trabalho de curadoria que a gente traz pra dentro do nosso universo de podcasts.” 

Universo este que vai crescer ainda mais. No dia 19 de novembro, Hysteria lança um podcast original em parceria com o Spotify. Criado pelas atrizes Karina Ramil, Lorena Comparato, Andrezza Abreu e Anita Chaves, da Cia de 4 Mulheres, Prato Frio traz histórias de vingança – um prato que, sabemos, se come frio – com muito humor e revelações absurdas. A cada episódio, ouvimos quatro áudios de personagens diferentes narrando revanches que viveram (seja como autoras ou alvos) ou testemunharam, como se fossem áudios de WhatsApp enviados para um amigo/familiar/namoradx. Acompanhe em https://hysteria.etc.br/tags/podcast/

Gaía Passarelli é jornalista e escritora, autora de Mas Você Vai Sozinha? (Globo Livros, 2016). Nascida e criada em São Paulo, mora num prédio velho da Bela Vista com o filho, três gatos e uma crescente coleção de guias de viagem. Você a encontra no twitter @gaiapassarelli e no site gaiapassarelli.com

2 Comentários

Comentar

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

2 respostas para “A nova podosfera”

  1. Ira disse:

    Olá, obrigada pelo apoio às #mulherespodcasters e o incentivo com essa belíssima matéria.

  2. Guilherme Henrique Da Silva disse:

    🙂

Deixe uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *