‘A pornografia é um lugar de reflexão sobre a sociedade’
Especialista nos chamados pornôs feministas, a professora de Cinema da UFF Mariana Baltar explica por que o gênero ganha cada vez mais força e divide suas descobertas mais excitantes
04.12.2018 | Por: Mariana Filgueiras
Frame da série 'X-Confessions', da diretora sueca Erika Lust
Esqueça todos os lugares-comuns associados à pornografia tradicional. Atrizes objetificadas, em posições sexuais que favorecem o ponto de vista masculino, subjugadas a uma câmera que não está nem um pouco interessada no desejo delas. E que resultam em filmetes sofríveis, que não animam muito o público feminino, de estética e processos de produção datados. Num movimento crescente principalmente na Europa e nos Estados Unidos, ganha força o chamado “pornô feminista” – fotos e vídeos feitos por e para mulheres, que reivindicam um modelo de audiovisual mais sustentável, com foco no desejo feminino. No Brasil, uma das principais estudiosas dessa nova vertente é a pernambucana Mariana Baltar, professora de Cinema e Audiovisual na Universidade Federal Fluminense (UFF), que conversou com Hysteria sobre suas descobertas mais excitantes.

Mariana Baltar
Nos seus estudos sobre cinema contemporâneo, você começou pesquisando o melodrama, que te levou a estudar os chamados “gêneros do corpo”, como a pornografia. O que um tem a ver com o outro?
Como latina e brasileira, o melodrama está nas nossas entranhas. De um modo ou de outro, faz parte do nosso cotidiano e com ele lidamos em várias esferas – do consumo novelesco à apreciação política. Mas a descoberta do melodrama como problema teórico se deu pelo documentário. Foi o documentário que me mostrou o melodrama para além da visão preconceituosa. Na minha tese de doutorado, analisei como documentários brasileiros contemporâneos bebiam do melodrama para apresentar as histórias de vida dos seus personagens, e como isso era importante para estabelecer pactos de intimidade entre o documentário e o público, aquela sensação emotiva de que “saímos” do filme partilhando histórias e experiências de vida, engajando-se afetivamente com as experiências dos outros como se fossem nossas. Aprendi a olhar de modo diferente para o melodrama, perceber sua potência política. E a partir daí fui mergulhando em outros tipos de filmes em que, assim como no melodrama, o engajamento afetivo e o corpo são centrais para os pactos entre obra e espectador, ou seja, formas de construir o filme de um jeito que capture, mova e toque o corpo do espectador. Daí passei a encaminhar minha pesquisa para os chamados “gêneros do corpo”: melodrama, pornografia e horror. A centralidade do corpo como vetor de atuação política, algo cada vez mais pertinente no contemporâneo, sobretudo no que diz respeito às questões em torno de gênero e raça.
E por isso você acabou mergulhando na erotização no cinema?
Sim. As imagens e sons têm poder de nos mover corporalmente. Elas nos afetam, capturam, engajam… Nos fazem partilhar sensações e sentimentos com os corpos que se movem nas telas. É em si um poder erótico, independente de os corpos nas telas estarem performando ações sexuais. Por isso tem sido tão central para mim pensar as relações corpo e cinema de uma maneira geral – mais até do que o foco particular no campo do pornográfico. A questão do corpo colocado em cena e encarnando/incorporando as tensões políticas e sociais sempre foi e continua sendo o norte das minhas preocupações.
E essa relação corpo-cinema é explícita na pornografia.
É importante perceber a pornografia como um campo complexo e fértil para refletir sobre as dinâmicas e tensões (tecnológicas, discursivas e culturais) da sociedade e da cultura midiática, como um todo, e do audiovisual em particular. Por outro lado, o interesse geral pela pornografia se dá em conjunto com o interesse crescente pela questão do corpo. Pornografia diz respeito a esses corpos em ação mobilizando desejos e prazeres. Nesse sentido, é importante destacar a importância da pornografia, esse mundo complexo e nada unívoco que, aliás, devemos chamar de pornografias, como lugar de reflexão sobre a sociedade. Mas não apenas como espaço de reflexão sobre a sociedade. A pornografia pode ter centralidade como pedagogia político-cultural, como uma espécie de “re-educação dos desejos”. Como escreveu Richard Dyer, num artigo publicado na Jump Cut em 1985: “A defesa da pornografia como gênero deve ser baseada na ideia de que uma arte enraizada nos efeitos corporais nos pode dar um saber sobre o corpo que outras artes não podem.” Hoje em dia, a pornografia nos fornece esse saber sobre o corpo – só que é um saber principalmente mau, reforçando os piores aspectos da construção social da masculinidade que homens aprendem a experimentar nos seus corpos.
E como podemos “reeducar os nossos desejos” através da pornografia?
Primeiro, precisamos rejeitar qualquer noção de “sexo puro”. Se a gente pensa no papel e na importância cultural e estética do pornográfico para as sexualidades consideradas dissidentes (e aqui podemos incluir a mulher, pensando nela como agente da sua sexualidade, já que na modernidade ela parece ter sido relegada ao papel de objeto passivo da sexualização) não podemos repetir as falas e argumentos que apenas condenam o campo do pornográfico. Precisamos olhar para ele com a mesma seriedade que olhamos para qualquer outra manifestação cultural – com suas contradições, com suas relações de exploração na esfera do trabalho e da produção, com suas cooptações políticas pelo mundo do espetáculo comercial, mas também com suas potencialidades de inovação estética e de uso político, com seus poderes de afetação e sedução. Precisamos não ceder ao moralismo de meramente desmerecer este campo do pornográfico, não fazer teoria do tipo facebook (que confunde a reflexão crítica com dar like e dislike, dizer apenas se é bom/certo ou ruim/errado), nem fazer análise do tipo cheerleader (celebração cega e rasteira para dizer que tudo é lindo, divino, maravilhoso e inovador).
E explorar o que há de novo nesse campo?
Sim. No contexto contemporâneo, emerge uma vasta produção pornográfica feminista, que pode ser dividida em subgêneros como o “pornô para mulheres”, a pornografia queer e a pós-pornografia. O pornô queer/feminista é hoje considerado um nicho do mercado de pornografia online e alternativa, mobilizando uma a indústria própria, na qual se destacam nomes como a atriz, diretora e produtora Courtney Trouble e seu website Indie Porn Revolution, os projetos Crash Pad Series, Queer Porn TV e Good Dyke Porn, as diretoras Mireille Miller-Young, Tristan Taormino e Erika Lust, atrizes e atores trans como Dylan Ryan, Jiz Lee, James Darling e Buck Angel e até mesmo premiações, a exemplo do Feminist Porn Awards.
Quando foi que o “pornô feminista” começou a criar seu espaço?
As reações, reflexões e experimentações com o campo do pornográfico sempre acompanharam o pornô. Nos Estados Unidos, por exemplo, já no início dos anos 1980 podemos perceber uma preocupação das mulheres da indústria pornográfica comercial em se articular e começar a produzir seus próprios filmes, reivindicando, de modo bem feminista, um papel mais ativo, consciente e estratégico nas relações de trabalho, produção e na estética dos filmes. Nesse sentido, vale lembrar Candida Royalle, atriz da indústria que em 1984 funda sua produtora, a Femme Productions, e em outras mulheres da indústria. Foi a teoria feminista que impulsionou a reflexão sobre a pornografia no campo de estudos cinematográficos. Um dos trabalhos pioneiros é Hard Core – Power Pleasure and the Frenzy of the Visible, escrito por Linda Williams e publicado pela primeira vez em 1989.
Mas houve um novo fôlego mais recentemente, certo?
Sem dúvida houve um impulso maior a partir dos anos 2000, um boom de produções para mulheres, feita por mulheres e que abraçam de modo mais incisivo os debates feministas e de gênero. Acredito que isso seja por uma retomada da politização da pauta feminista. Depois da ressaca da segunda e terceira onda, quando o feminismo pareceu ser cooptado pelo capitalismo e perdurou um discurso pejorativo sobre o termo, voltamos a reivindicar o termo sem medo e com força de atuação política. Aliado a isso, o próprio desenvolvimento do mercado e sua “hiperfragmentação”, buscando nichos além do ambiente das plataformas digitais da internet, ampliou o consumo sem pudor por parte do público feminino, o que forçou mais ainda a demanda por essa vertente de produções.
Existe uma espécie de cartilha que oriente o pornô feminista?
Há, fundamentalmente, uma preocupação em entender a pornografia como campo de estratégias e negociações com a agenda de empoderamento feminino a partir do domínio do próprio corpo e do próprio prazer. Nessa agenda feminista pró-pornografia três aspectos são importantes e devem estar construídos nas imagens: 1) a dimensão consensual (o que tenho chamado nos meus escritos de “construção narrativa do consentimento”), ou seja, evidenciar, às vezes em um mero detalhe, que as ações que poderiam ser vistas como violentas partiram da mulher, que é uma escolha dela colocar a mão de um homem, ou de outra mulher, apertando seu pescoço, por exemplo; 2) a ideia de coparticipação entre parceiros/as (desejo e prazer como partilha, encontro entre corpos); 3) exaltação do prazer feminino a partir das noções de empoderamento e pornificação de si (reivindicar o direito e o prazer em se pornificar, fugindo assim da ideia heteronormativa de que ser sujeito/objeto do prazer é ser passivo e ser passivo é diminuir-se enquanto sujeito). Atravessando esses três aspectos, de modo central, está uma crítica à padronização – racial, heteronormativa – dos corpos e seus prazeres.
Quais são as vertentes ou cineastas que você elencaria como mais importantes nesse movimento mais recente?
Não podemos exatamente pensar em termos de escolas ou vertentes, mas talvez de caminhos distintos. Há um pendor mais comercial, digamos assim, que dialoga melhor com os códigos da pornografia mainstream mas estabelece outras relações de trabalho, de produção, com cuidados, respeito e atenção para as mulheres nas obras (tanto nas formas de construção da coreografia sexual, quanto na inserção e presença das mulheres na produção como profissionais, realizadoras etc). Nesse sentido, podemos falar de um pornô feminino (feito por mulheres, para mulheres) que pode ou não incluir de modo mais explícito afirmações políticas sobre os corpos em cena. Uma pornografia que se preocupa em colocar em cena dissidências em termos de raça, de volume dos corpos, de orientações sexuais, prazeres e desejos. Há também uma pornografia mais explicitamente política – feminista e queer – onde essa preocupação em colocar corpos e desejos dissidentes em cena é mais enfática.
Você faria uma lista de cinco filmes que acredita que representem bem o que há de mais interessante no pornô feito para mulheres hoje?
Filmes em si é difícil singularizar – pela própria característica rápida das produções. Mas diria: praticamente todos os filmes da série X-Confessions, dirigida por Erika Lust (mais até do que os filmes dela anteriores); Shine Louise Houston, seus filmes e as obras que ficam “em cartaz” no PinkLabel.tv, um portal de streaming criado por ela em 2013 para abrigar obras de produtores e realizadores independentes. O PinkLabel.tv é um excelente guia para buscar pornografia feminina e feminista. Para mim, hoje, é o melhor lugar para consumir pornô audiovisual na internet. O Female Fantasies, de Petra Joy; Deep Inside Annie Sprinkle ou qualquer outro filme dirigido por ela (pelo seu pioneirismo na atitude política e feminista frente ao pornô, e pelo bom humor com que ela trata sua própria trajetória na indústria); e os Dirty Diaries, um projeto do Instituto de Cinema Sueco com 12 curtas de realizadoras convidadas a dar sua expressão de pornografia feminina e feminista. Os curtas são: Skin (Elin Magnusson, 2009), Fruitcake (Sara Kaaman & Ester Martin Bergsmark, 2009), Night Time (Nelli Roselli, 2009), Dildoman (Åsa Sandzén, 2009), Body Contact (Pella Kågerman, 2009), Red Like Cherry (Tora Mårtens, 2009), On Your Back Woman! (Wolf Madame, 2009), Phone Fuck (Ingrid Ryberg, 2009), Flasher Girl On Tour (Joanna Rytel, 2009), Authority (Marit Östberg, 2009) e For the Liberation of Men (Jennifer Rainsford, 2009).
E como anda o Brasil nessa história?
No Brasil, de um modo geral, acho bem interessante as realizações da X-Plastic. Mas acho que o Brasil ainda tem uma atitude muito conservadora e moralista frente à pornografia, pouco buscando estudar sua própria indústria. Esta também é muito desarticulada e, claro, enfrenta um mercado incerto e instável (o que não difere muito do contexto da indústria audiovisual como um todo). Em termos mais explicitamente ativistas (a vertente mais diretamente feminista e queer), no Brasil destacaria o curta Latifúndio, de Erica Sarmet, e Sexo com a Cidade, do coletivo Porno Clown. Além dos trabalhos de feministas latinas como a mexicana La Bala Rodriguez. Mas percebo no Brasil que nosso diálogo com o pornográfico tem se dado no cinema mais autoral contemporâneo (que não necessariamente foi feito para circular pelos caminhos de consumo da pornografia na internet, por exemplo). Filmes que fazem circuito de festivais de cinema e às vezes entram em cartaz em salas comerciais e que inserem significativas, intensas e interessantes cenas com coreografias sexuais, como os recentes Corpo Elétrico, As Boas Maneiras, Pendular, Tinta Bruta, Doce Amianto, Boi Neon.
Mariana Filgueiras é jornalista especializada em cultura. Publica reportagens no jornal Folha de S. Paulo e nas revistas Piauí e Continente, além de ser uma das roteiristas do Greg News, da HBO/Brasil
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