A primeira mulher
O 'eu' inaugural da História da literatura foi escrito por uma alta sacerdotisa da Suméria, uma das regiões mais férteis da Mesopotâmia. E eu aposto que você nunca leu nada que ela escreveu
12.01.2021 | Por: Letícia Gicovate
Há quase 5 mil anos, muitos séculos antes de Safo e suas rimas rasgadas, milênios antes de Hipatia e sua filosofia apagada, muito antes da Bíblia e de tudo o que te contaram sobre Deus, uma mulher chamada Enheduanna escrevia hinos de amor.
Filha do Imperador Sargão e alta sacerdotisa do templo – um dos cargos sociais e políticos mais importantes da época – Enheduanna foi a primeita poeta, a primeira autora. A primeira pessoa a escrever obras literárias na História da Humanidade.
Ocultada pelo tempo, seu nome reapareceu em 1927, quando escavações numa área do Iraque revelaram dezenas de escrituras assinadas por ela. A partir daí foi se traçando um pouco da vida incrível dessa princesa da Suméria, nascida no Século 23 a.C.
Mas antes que você embarque nessa história, um aviso: é preciso descolonizar seu olhar. A antiguidade era bem mais interessante, desenvolvida e igualitária do que você pensa. (E também é preciso lembrar um monte de nomes esquisitos, peço desculpas.)
Então voltamos à Suméria, uma das regiões mais férteis da Mesopotâmia, um dos berços da civilização. Palco da criação da primeira grande metrópole do mundo e da escrita cuneiforme, a mais antiga de que sem tem notícia. Por trás de tanta prosperidade estava Inanna, a deusa do amor e do sexo, da beleza e da guerra, a Senhora das Feras. E por que a galera daquela época era bem mais legal que a gente, a divindade mais popular de seu tempo.
Suas cerimônias religiosas incluíam torpor e êxtase, perfumes e cerveja, inversões de gênero e, naturalmente, ritos sexuais. Um ninguém é de ninguém sagrado e perfumado que foi celebrado por séculos. E você aí se achando moderna no carnaval!
Pra essa deusa transgressora a sacerdotisa Enheduanna dedicou hinos de amor e devoção, versos que inspirariam desde A Odisseia de Homero até os Cânticos dos Cânticos. Seus textos são íntimos, potentes e voluptuosos, sua conexão espiritual com a deusa Inanna se encontra nas curvas do poder e do prazer.
Em algum momento chega a ficar difícil separar a sacerdotisa de sua musa divina. As vidas de Enheduanna e de Inanna se entrelaçam, se casam de fato. Duas figuras femininas poderosas e justas, reinando sobre homens e sobre povos, ditando leis e provocando tesão.
Através dos textos sagrados e profanos de Enheduanna, sua musa divina resistiria por milênios. Viajaria até a Babilônia sob o nome de Ishtar, seria conhecida entre assírios e egípcios como Astarte e ainda daria pinta na Bíblia Hebraica como Asherah.
Mas aí é outra história, que eu prometo contar.
Indomável e impetuosa, nas escrituras a deusa se apaixona, deseja, cuida e protege, se enfurece e destrói. Transita por luz e sombra, morte e vida. E renasce, sempre, potente e plena, assim como a natureza, assim como todas nós.
Mas diferente de nós, a princesa, escritora e alta sacerdotisa Enheduanna viveu num tempo sem divisões tão claras de gênero, onde uma mulher poderia ser tão dotada de recursos e conhecimento quanto um homem, exercia o sacerdócio e assumia altas posições de poder.
Um tempo em que homens e mulheres reverenciavam a natureza mais que a si próprios, e se entregavam ao sexo como forma de oração.
Incrível imaginar que depois de tantos milênios caminharíamos tantos passos pra trás. Num suposto avanço, as civilizações patriarcais destronaram as deusas, castraram nossa liberdade e apagaram a nossa História.
Mas se você olhar pra trás, sempre estivemos lá, escritoras, sacerdotisas, mulheres, deusas. Muitas ainda escondidas sob os escombros dos tempo, porém presentes e ativas dentro do que nos constitui.
Precisamos retomar a nossa narrativa, precisamos contá-la, precisamos celebrar tudo o que fomos, o que somos nós.
Precisamos nos lembrar de quando Deus era uma mulher.
Hinos a Inanna
Trechos de versos de Enheduanna
“Senhora de todas as essências, cheia de luz,
boa mulher, vestida de esplendor,
que possui o amor do céu e da terra,
amiga de templo de Na,
tu usas adornos maravilhosos,
tu desejas a tiara da alta sacerdotisa
cujas mãos seguram as sete essências.
Ó minha senhora, guardiã de todas as boas essências,
Tu colheste as essências santas e as trazes contigo,
apertadas em teus seios (…)
Como dragão, encheste a terra com veneno.
Como trovão, quando bradas sobre a terra,
árvores e plantas caem diante de ti.
És o dilúvio descendo da montanha,
Ó deusa primeira,
Inanna, deusa da lua, que reina sobre o céu e a terra!
Teu fogo espalha-se e cai sobre a nossa nação.
Senhora montada numa fera,
An te dá qualidades, poderes sagrados,
e tu decides.
Estás em todos os nossos grandes ritos.
Quem pode compreender-te? (…)
Grande filha de Suen,
impetuosa vaca selvagem, senhora suprema que domina Na,
Quem ousa não venerar-te?”
“Grande Rainha das Rainhas,
Tornou-se maior do que sua mãe que deu à luz a ti,
Desde que saíste do ventre sagrado,
Conhecedora, sábia, rainha de todas as terras,
quem multiplica todas as criaturas vivas e os povos
Eu tenho proferido tua canção sagrada.
Deusa que dá vida, adequada para os Me,
cuja aclamação é exaltada,
Mulher misericordiosa, que dá vida, esplendor do coração,
Eu já proferi antes tua adequação com os Me.
Eu entrei antes de ti em meu santo gipar,
Eu, a alta sacerdotisa, Enheduanna,
Carregando a cesta de masab, pronunciei um canto alegre,
mas agora eu não moro mais no lugar bom que tu estabeleceste.
Chegou o dia, o sol me queimou
Veio a sombra da noite, o vento sul me oprimiu,
Minha doce voz de mel tornou-se estridente,
Tudo o que me dava prazer se transformou em pó.
Oh Sin, Rei do Céu, meu amargo destino,
Para An declarar, An vai me entregar,
Reze, declare isso a An, ele me livrará.
A realeza do céu foi conquistada pela mulher Inanna
aos pés de quem está a inundação.
Aquela mulher (Inanna) tão exaltada,
que me fez tremer junto com a cidade (Ur),
Fique com ela, deixe seu coração ser serenado por mim.
Eu, Enheduanna, irei oferecer súplicas a Ela,
Minhas lágrimas, como bebidas doces.”
(Nota: agradecimento especial a Julia Smith, que além de me emprestar seu conhecimento delicioso também me cedeu essa bela tradução do sumério para o português.)
Letícia Gicovate é editora de conteúdo, escritora e uma das criadoras, ao lado de Alice Galeffi, da revista Nin
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