A questão racial e suas novas velhas lutas durante a pandemia do coronavírus
Não estamos todos no mesmo barco, como muito se disse no início da quarentena. Há pessoas em iates e outras em boias furadas. E precisamos encarar essa realidade, construindo políticas públicas e privadas para pavimentar o caminho ideal
18.05.2020 | Por: Luana Génot
Eu costumo dizer que gosto mais dos processos. Foram eles que me transformaram na pessoa que sou hoje. O que me move é a busca constante pela construção de novas narrativas para negros. E pensar em soluções para desenvolver essas histórias me levou a abrir novos caminhos na vida.
Minha mãe e minha avó sempre me ensinaram – apesar de nunca terem sido militantes – que eu não deveria nunca abaixar a minha cabeça. Qualquer brincadeira racista na escola era levada muito a sério. Fui, inclusive, trocada de colégio por conta de um episódio que a diretoria achou que era “bobagem”. Apesar de nunca ter tido um papo formal com a minha mãe sobre racismo na infância e adolescência, sempre soube o quanto era uma questão importante.
Aos 18 anos, passei por uma experiência transformadora, que eu costumo dizer que foi a virada de chave para entender que ser uma mulher negra no Brasil ainda era problemático. Percebi que era muito difícil construir narrativas que fossem além do que era esperado para nós. Normalmente limitadas, subestimando poder intelectual e ligadas ao corpo como modelo, atriz, passista ou outras posições operacionais como empregada doméstica ou atendente de telemarketing. Entenda, não há nenhum problema com essas profissões – são todas muito dignas – mas ter essas como únicas narrativas profissionais para mulheres negras é muito limitado e trava o desenvolvimento econômico e social do nosso país.
Na época, comecei a atuar como modelo de passarela e percebi que o meu papel estava sempre preso ao estereótipo equivocado associado à imagem de mulher negra, que vinha acompanhada de contextos limitados como favela ou África – esta sempre retratada como um país e não como continente. Novamente, o problema não estava nos temas, mas na limitação dos contextos, que sempre me incomodaram muito. Lembro que também nesta época cheguei a ouvir que só poderia haver uma negra em um desfile, por exemplo. Reforçando a chamada história única de sucesso para representar uma população tão plural e de mais de 110 milhões de pessoas. Lembro também as discussões em relação à baixa presença de pessoas negras em desfiles de coleções de inverno. A desculpa era que negras combinavam mais com temas quentes, verão. Estava saturada com essa limitação de papéis, estereótipos e salários menores – sim, os cachês, quando comparados com o das minhas colegas brancas, eram menores. Mas, por outro lado, agradecida pelas oportunidades de ter podido trabalhar, conhecer e morar em outros países como França, Inglaterra, Bélgica e África do Sul. Decidi, então, voltar ao Brasil e ingressar na universidade. Motivada por tantas questões e a vontade de poder ajudar na construção de novas narrativas sobre pessoas negras, fui cursar Comunicação Social com especialização em Publicidade.
A partir daí começa a minha fome para entender quem eram as mulheres negras que já tinham pautado a questão racial no mercado de trabalho. Mergulhei profundamente no tema e foi por meio de um projeto da faculdade que surgiu o conceito que mais tarde se transformaria no Instituto Identidades do Brasil. Eu desenvolvi uma exposição de fotos que me levou até o Sri Lanka como delegada de uma Conferência Mundial da Juventude, produzida pela ONU. Durante a graduação, também tive a oportunidade de ser intercambista do programa Ciência sem Fronteiras e bolsista pela CAPES. Nesse período, me nutri de novas narrativas – uma oportunidade que tive por conta de uma política pública da época. Estudei por um ano nos EUA, tive uma chefe negra dentro de uma agência de publicidade em Chicago, fui voluntária da campanha do Barack Obama e fiz um curso de raça, etnia e mídia no país. E tudo isso movida por aquele desejo de falar sobre raça e mercado de trabalho com o objetivo de tentar acelerar a possibilidade de criar outras narrativas para profissionais negros.
É pensando em como poderíamos mergulhar nas nossas próprias identidades e fugir dos estereótipos que nasce o ID_BR. Hoje, no Brasil, a identidade racial é atrelada a uma narrativa histórica, que é lida pela sociedade como subalternidade, feia e não-líder. E é isso que precisa ser problematizado: o conceito de que certas identidades valem menos do que outras.
A criação da campanha Sim à Igualdade Racial surge porque até 2015 o racismo no Brasil era visto do ponto de vista da negação. A pessoas falavam que a gente deveria dizer não ao racismo. Mas precisávamos dizer sim, ter um direcionamento. Estudando muito o que os outros fizeram antes de mim, e que inclusive permitiu que eu tivesse acesso à universidade e outras oportunidades, resolvi desenvolver um conceito que validasse o Estatuto da Igualdade Racial criado em 2010. Queria ratificar a lei e fazer com que praticássemos o que ela prega – a igualdade de oportunidades – e entendi que mais do que dizer não ao racismo, a gente precisava dizer sim à igualdade racial.
No mundo pós-pandemia, vamos entender quem estava fazendo diversidade e inclusão de forma séria ou de brincadeira
O ID_BR nasce oficialmente em 2016 para falar de igualdade dentro de três pilares de atuação: empregabilidade, educação e engajamento. No pilar de empregabilidade, criamos o Selo Sim à Igualdade Racial com o intuito de ajudar a reconhecer e refinar as práticas corporativas relacionadas à pauta e desenvolvemos treinamentos para ajudar empresas a criar musculatura sobre essa temática. No pilar de engajamento, desenvolvemos eventos e campanhas, como o Prêmio Sim à Igualdade Racial, para reconhecer pessoas, organizações e empresas que atuam dentro da causa. Também desenvolvemos um fórum para conectar profissionais e empresas com conteúdo e vagas de emprego. Fora uma série de outras ações físicas e digitais. Nós acreditamos que igualdade racial deve ser uma luta de todo mundo, independentemente da cor da pele. Todo mundo pode ter um papel na luta antirracista.
Hoje, no momento que vivemos, isso fica ainda mais latente. No começo da quarentena, usava-se muito o discurso do “estamos todo no mesmo barco”. Morre pobre, morre rico, morre negro, morre branco. Mas o senso crítico e as estatísticas vêm ganhando a cor da realidade. Hoje, já sabemos que o nível de letalidade de Covid-19 é maior entre pessoas negras, sobretudo as que estão na periferia. Não estamos no mesmo barco, estamos falando de pessoas em iates e outras em boias furadas.
É importante reforçar e endossar o pensamento crítico, porque não somos todos iguais. Às vezes, nos colocamos por trás de um pensamento idealizado – que é onde, espero, que cheguemos um dia – com oportunidades de educação, emprego e saúde pública para todos. Mas é importante entender que essa não é a nossa realidade e por isso é tão importante a construção de políticas públicas e privadas para solucionar essas questões e pavimentar o caminho para que o ideal se transforme em real algum dia.
Nós desenvolvemos o estudo “Saúde financeira da mulher negra profissional e empreendedora durante a Covid-19” para pensar além das cestas básicas – que foram e continuarão sendo imprescindíveis, já que é inadmissível que em um país como o Brasil falte comida para as pessoas.
O levantamento mostrou que 72% das mulheres que responderam são empreendedoras. Cruzando esses dados com o Sebrae, conseguimos ver a diferença entre as empreendedoras de necessidade e de oportunidade. Muitas dessas mulheres foram colocadas nesses negócios porque não tinham outra opção. Muitas vezes o mercado de trabalho não absorve essa mulher por conta do cabelo ou da cor de pele. E é importante pensarmos nisso, já que o discurso romantizado do empreendedorismo pode ser ainda mais reforçado pós-pandemia.
O estudo também revelou que quase 80% não têm reserva financeira e quase 50% têm muito mais medo de perder clientes do que pegar a Covid-19. Já entre as profissionais empregadas, o maior medo é o de perder emprego. Outro receio apontado é de que os programas de diversidade e inclusão dentro das empresas percam a força.
Esses programas dentro das empresas – ainda que em fase inicial – têm possibilitado que o debate deixe de ser um tabu, mas existe o temor de um retrocesso por eles não serem vistos como prioridades e estratégicos. O futuro vai exigir muito das empresas, um posicionamento social e racial que seja visto como exemplo. No mundo pós-pandemia, vamos entender quem estava fazendo diversidade e inclusão de forma séria ou de brincadeira. É fundamental que isso se mantenha para que esse longo caminho que avançamos não estacione.
Já se passaram 132 anos após a abolição da escravatura e a igualdade racial ainda não chegou. Se não a priorizarmos colocando prazos e metas a serem alcançadas, não chegaremos lá. Se pudermos ajudar a acelerar esse processo, estimulando as empresas a ganharem ritmo, creio que já teremos feito um bom papel. Eu quero ver a igualdade racial ainda em vida. Eu não quero que ela seja apenas para a minha filha ou neta. Luto hoje porque eu quero ver isso acontecendo. Quero poder transitar por ambientes corporativos e restaurantes chiques e ver a galera preta se divertindo, não apenas estampando noticiários por morte por Covid-19 ou tiros na favela. Eu quero viver em um país onde os negros têm pleno acesso a lazer, viagens, intercâmbios, cargos políticos, sem ter que fazer três vezes mais força e percorrer os obstáculos desnecessários para alcançar oportunidades que deveriam ser mais acessíveis e disponíveis. É para isso que eu luto. Para ver a representatividade negra possibilitando que todos ocupem cargos à altura que merecem.
Luana Génot já foi modelo, publicitária, escritora, colunista, bolsista do Programa Ciência Sem Fronteiras na Universidade de Wisconsin, voluntária na campanha do Obama. Hoje é diretora-executiva do ID_BR (Instituto Identidades do Brasil)
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