‘Playboy’: é possível um futuro para a revista pós-misoginia?
A edição de outubro da revista americana é histórica: pela primeira vez um homem assumidamente gay estampa a capa
20.10.2021 | Por: Maria Clara Drummond
A edição de outubro da Playboy americana é histórica: é a primeira vez que um homem assumidamente gay é capa da revista. Bretman Rock é um influenciador filipino-americano de 23 anos conhecido por seus tutoriais de maquiagem – ele tem 17 milhões de seguidores no Instagram. Antes disso, alguns homens haviam posado para a revista, inclusive com o icônico traje de coelhinha que o influenciador veste, mas nas páginas de dentro – entre eles, os atores Paul Rudd e Ezra Miller. Na capa, só o fundador da revista, Hugh Hefner.

Nos últimos anos, a Playboy tem tentado se adaptar aos novos tempos, em que a objetificação sexual feminina não é mais vista com naturalidade. Agora, nos cargos de chefia, há homens gays e mulheres, normalmente jovens, uma mudança que só foi possível após a morte de Hefner, em 2017. Rachel Webber, chefe do marketing, declarou ao New York Times: “Nós conversamos muito sobre qual é o olhar da Playboy, e como faremos para diversificá-lo. É um pouco como estar numa aula de estudos de gênero.”

Por décadas, a Playboy ditou qual seria o ideal feminino para seu público, masculino e heterossexual. Segundo Hugh Hefner: “A vizinha gata sem roupa” (“the girl next door with her clothes off”), um imaginário que nos seus anos iniciais navegava entre a inocência e a sexualidade. Segundo um artigo da New Yorker, a mulher Playboy teria “o rosto da Shirley Temple, o corpo da Jayne Mainsfield” – uma concepção um tanto problemática, uma vez que foram durante a infância os anos de fama da Shirley Temple.
Por um lado, Hefner e a Playboy sempre apoiaram de modo enfático valores progressistas, como legalização do aborto e direitos LGBT. Assim, é de certa forma natural que a publicação continue avançando ao repensar sua representação de mulheres e pessoas queer. Mas três quartos do seu público ainda é masculino e heterossexual nos Estados Unidos – segundo Rachel Webber, o objetivo é alcançar pelo menos 50% de leitoras mulheres. A grande pergunta é: como?!

Bretman Rock é a última das decisões editoriais rumo esse possível novo público. Antes disso, a revista já havia deixado os anúncios publicitários de lado, e mudado seu projeto editorial, com papel de gramatura mais sofisticada, tornando-a mais próxima a um livro a se exibir na mesa de centro que escondida no armário do banheiro. “Queremos ser relevantes, e para isso devemos apelar para a igualdade de gêneros”, diz Rachel Webber na mesma entrevista. Mas a revista parece não saber exatamente como apelar para aqueles que estão fora do seu público tradicional. Para isso, seria preciso definir: como é o desejo daquele que não é o homem cisgênero e heterossexual?
Há um debate interessante sobre se já é possível avançar além do “male gaze” (em tradução livre, olhar desejante masculino). O termo foi criado pela crítica de cinema Laura Muvey no seu ensaio “Prazer visual e cinema narrativo”, de 1972. Em princípio, refere-se ao audiovisual, mas podemos estendê-lo para outras mídias, principalmente para um veículo tão definidor para o desejo sexual quanto a Playboy. Quase tudo que vemos no cinema, na televisão e nas páginas das revistas é através do olhar masculino – afinal é quem normalmente está atrás da câmera.
O olhar desejante masculino clássico no audiovisual tem foco primeiramente no corpo, em ângulos fechados, parte a parte, ou seja, o corpo é desmembrado, em câmera lenta, e o rosto só é mostrado depois, quando sequer é mostrado – não raro a cabeça feminina é simplesmente cortada. Dessa forma, o espectador não tem acesso a subjetividade feminina, a mulher não pensa ou sente, é um mero objeto. Nas páginas das revistas, mesmo as voltadas para o público feminino, como as revistas de moda, a objetificação é similar, como mostra a serie de documentários disponíveis no Youtube “Killing us softly”.
O olhar desejante masculino é tão influente em pessoas de todos os gêneros que sequer sabemos muito bem como se daria o olhar desejante feminino – afinal, as mulheres (lésbicas, hétero, cis ou trans) também cresceram acostumadas com a noção masculina do que seria atraente. Não é segredo que a sociedade patriarcal que nós vivemos faz com que a até mesmo mulheres tenham misoginia inconsciente, internalizada.
Em Casino Royale, de 2006, o primeiro filme da franquia James Bond estrelado por Daniel Craig, o ator emerge do mar mostrando seu corpo definido. A cena é uma alusão direta à cena de Ursula Andress em O Satânico Dr. No, de 1962. A ideia seria democratizar a objetificação sexual. Mas esse caminho apenas inverte o ângulo, não é um novo modo de olhar, que segue masculino, com foco no corpo, não nas demais sutilezas que também contribuem para o desejo. A resposta talvez esteja mais perto do que diz um meme recente no Tik Tok: o desejo masculino objetifica a mulher, o desejo feminino subjetifica o homem. Resta saber se a Playboy nos ajudará a difundir essa forma mais humana de expressar o desejo sexual.
Maria Clara Drummond é jornalista e escritora, autora dos romances A Realidade Devia Ser Proibida (editora Companhia das Letas, 2016) e A Festa É Minha e Eu Choro Se Eu Quiser (editora Guarda Chuva, 2013)
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