A turma do Rivotril

A vida percebida através das lentes dos remédios psiquiátricos, a dificuldade de distinguir a si próprio quando o uso já conta décadas e a glamurização dos tranquilizantes

02.05.2018  |  Por: Maria Clara Drummond

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A turma do Rivotril

Somente aos 27 anos eu soube como era meu cabelo de verdade. Desde os 12, eu fazia toda sorte de alisamentos, e era encorajada a usar meu cabelo como se eu fosse uma bailarina: preso, bem apertado, com laquê ou gel, para inibir o frizz. Da mesma forma, eu não tenho a menor ideia de como a minha personalidade seria caso eu não fizesse uso de remédios psiquiátricos desde essa mesma idade.

No início da sexta série, reclamei para minha mãe que não conseguia mais enxergar o quadro negro, e no oftalmologista descobrimos que eu estava com toxoplasmose, que causou a perda de visão do meu olho esquerdo. É possível que esse processo, junto com as dezenas de comprimidos diários de cortisona, tenha sido o responsável pelo desenvolvimento da minha depressão.

Entre idas semanais ao psiquiatra, experimentei vários medicamentos, e cada nova tentativa era um sofrimento extra. Zyprexa me fez desenvolver aumento de apetite, compulsão alimentar, e engordei muito – isso só parou com a interrupção do remédio. Tofranil me causou arritmia cardíaca. Lexapro e demais antidepressivos clássicos pioravam meu estado depois de duas semanas de uso. Finalmente, acertei uma medicação aos 16 anos, que tomo até hoje. Ano passado, tentei óleo de canabidiol, e embora eu estivesse muito animada para algo um pouco mais distante da indústria farmacêutica, comecei a ficar com raciocínio muito lento, e precisei voltar para meu bom e velho Tegretol.

Durante toda a adolescência, eu era desencorajada pela minha família a contar aos colegas de escola que tomava remédios. Mas era claro que eles percebiam que havia alguma coisa errada. Os remédios me deixavam dopada, eu precisava chegar atrasada nas aulas, e mesmo assim dormia durante as classes. Esse ritual se estendeu até a faculdade.

Até hoje, tenho pesadelos só de imaginar uma nova tentativa medicamentosa, com novas sensações sutis a que preciso prestar atenção, em todos os momentos do meu cotidiano, tomando cuidado para não confundir com os sintomas de ressaca ou TPM. É peculiar esse estado em que é necessário discernir meu estado mental com exatidão para relatar ao médico – além de ser muita responsabilidade para uma adolescente frágil prover as informações subjetivas necessárias para manter, tentar mais um pouco ou retirar a substância em uso. Em 2016, depois de uma overdose farmacológica, precisei rever parte do meu receituário, e consequentemente esse doloroso ritual precisou se repetir.

De modo consciente, tomei a decisão de ser cada vez mais vocal a respeito do assunto, relatando à exaustão minha experiência pessoal, numa tentativa de normatizar um assunto ainda repleto de tabus

Na vida adulta, aprendi a lidar com a eterna disfunção de sono, e a administrar minha imagem enquanto doente mental. De modo consciente, tomei a decisão de ser cada vez mais vocal a respeito do assunto, relatando à exaustão minha experiência pessoal, numa tentativa de normatizar um assunto ainda repleto de tabus. O deprimido tem a tendência a ser muito autocentrado, era preciso dosar esses depoimentos para que não esbarrassem no narcisismo, mas fico muito feliz quando recebo mensagens de pessoas em situações similares, relatando que esses textos as ajudaram de alguma forma.

Essa publicidade a respeito pode esbarrar na glamurização à la Valley of the Dolls – jovens, bonitos e festivos viciados em tranquilizantes. Na geração anterior à minha, havia “a turma do Lex”, viciados em Lexotan. Hoje, esse posto é ocupado pelo Rivotril. Eu já combinei de encontrar um amigo numa galeria de arte porque eu havia viajado para São Paulo sem Rivotril. Em festas, já me abordaram perguntando se eu tinha na bolsa alguma cartela extra. Como o remédio, apesar de ser o único tarja preta no meu currículo desde sempre, custa menos de R$ 10, é comum esses escambos entre amigos e conhecidos, em busca de um tranquilizante para episódios específicos – demais antidepressivos podem custar quase R$ 1.000.

Semana passada, durante um jantar, um amigo avisou: “Comecei a tomar o mesmo remédio que o Gerald Thomas. Só avisando, caso eu me comporte de forma estranha.” Aparentemente, Gerald Thomas toma Topamax, moderador de humor que também diminui o apetite, e que me foi receitado circa 2004. Ao saber que havia mais um usuário no recinto, sentei-me ao seu lado para conversar, e descobrimos que também tomamos outro remédio em comum, Seroquel. Animada com a identificação, eu disse: “O meu é de 300 miligramas!”, para então ouvir que ele usava de 25mg. Eu ainda estava inserida muitos passos adiante no rolê farmacêutico.

Como todo o meio literário, fiquei muito chocada quando morreu o escritor Victor Heringer, em março passado. Era um menino extremamente talentoso, bonito e bem-sucedido. Não o conhecia, mas, olhando de fora, sua vida parecia perfeita, e nada do que eu havia lido indicava que ele sofria de depressão – ao que parece, poucos sabiam. Desde então, comprei seus livros, à procura de indícios, mas qual escritor não versa sobre a dor da existência e a iminência da morte? Aquilo me ficou na cabeça: uma vida que aparentava ser perfeita e uma tristeza escondida. Nós estamos cansados de saber que as imagens das redes sociais não representam a realidade. Mas, em alguma medida, acreditamos naquela narrativa, sim.

Victor Heringer e sua morte brutal e repentina me geraram o seguinte questionamento: em que medida o fato de eu dar tanta voz aos meus problemas psíquicos talvez tenha me salvado de um destino fatal? Conversando sobre isso com uma amiga em situação similar à minha, ela disse: “Vocalizar sobre minha depressão dá algum sentido a ela. O silêncio faz a dor coagular. A fala repetitiva às vezes renova o gozo escondido que existe na dor. Mas, ao mesmo tempo, a fala também fura esse processo.”

Eu falo, falo, falo, escrevo, escrevo, escrevo sobre os assuntos que pululam na minha cabeça, e de tão acostumada a esse processo, às vezes falo e escrevo mais que o necessário, ou até mesmo mais que eu necessito, pois é comum entrar no piloto automático, e a questão já ter sido amortecida na minha mente. A motivação é primordialmente egoísta, é apenas uma válvula de escape que, com sorte, talvez ajude alguém com o mesmo problema. Há uma linha tênue entre a quebra do tabu, a normatividade e a glamurização. Portanto, não há opção se não seguir na corda bamba.

4 Comentários

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4 respostas para “A turma do Rivotril”

  1. Mauro Jorge Santos disse:

    Oi Maria Clara

    Passei por 5 anos de esquizofrenia e tenho 15 anos de depressão.
    Tomo muitos remédios prescritos risperidona para a esquizofrenia dosagem alta 4mg, principalmente para quem não tem surtos desde fevereiro de 2002, passei por uma internação só que foi bastante terrível.
    A partir de 99 me impus uma disciplina ultra rígida para conseguir sair de vez da fase dos surtos, nenhuma exaltação eu me permiti por dois anos e meio, e de fato não tive mais surtos o que foi, embora tenha sido difícil o resíduo de esquizofrenia me deixava mais ativo e com força para contrariar minha tendência à doença.
    Já na depressão apesar de eu usar dosagem superior de antidepressivo a recomendada pela bula consigo ficar num estado onde o desespero não é tão forte.
    Mas mal consigo fazer as tarefas mínimas do dia a dia como banho por exemplo.
    Só saio de casa nos dias de semana para ir ou no terapeuta cognitivo comportamental toda ou na terapeuta ocupacional 1 vez por semana e nopsiquiatra uma vez a cada 7 semanas.
    Escrevo desde os 20 anos e em 2016 lancei meu último livro.
    Fora isso faço só pilates porque o cara vem em casa para eu fazer.
    Para breve aguardo minha aposentaria por invalidez. Não fico triste sou muito bem tratado quando viajo fico bem melhor do que o habitual e quando vejo meus amigos uma vez por mês.
    O que eu sinto mais é frustração diante da minha inadaptabilidade ao que me cerca.
    A melancolia é parte da minha vida que segue comigo e já está comigo muito antes da depressão se instalar, é parte de mim.

  2. Geordana Cavalheiro disse:

    Tb uso antidepressivo IRSS e Rivs. Faço terapia. Faço meditação. Caminhada. Yoga. Acupuntura. Nada parece adiantar por muito tempo. Exceto a conversa terapia com as amigas. É difícil. Não consigo ficar sem as meds. Tenho crises e fico descompensada. É triste.

  3. Maria Clara Drummond disse:

    Oi Bruna, faço análise de duas a três vezes por semana, e faço terapia em geral desde que tenho seis anos – ou seja, a vinte e cinco anos…

  4. Bruna Araújo disse:

    Fiquei curiosa para saber se a autora do texto tentou a psicoterapia. Esse me parece um bom espaço onde a fala sobre a dor e a implicaçao da pessoa com o seu sintoma é priorizada.

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