A viagem não acaba quando a gente volta
E nem quando damos check em todas as atividades e lugares que listamos antes da partida
08.01.2020 | Por: Carolina De Marchi
Ao longo da minha viagem de 18 meses percorri oito países: Argentina, Chile, Bolívia, Peru, Equador, Colômbia, Guatemala e México. Alguns objetivos estavam lá marcadinhos numa lista: mergulhar com tubarões no caribe, descobrir o Machu Pichu e outras trilhas desconhecidas no Peru, subir um pico nevado na Bolívia, visitar vulcões no Equador, conviver com indígenas na Amazônia, aprender sobre ancestralidade Maya na Guatemala, atravessar o deserto do Atacama. Só que mais da metade dos lugares a que fui e coisas incríveis que conheci se revelaram quando eu já estava na estrada, espontaneamente.
Semanas depois de partir, eu estava muito menos preocupada em dar checks na minha lista e bem mais interessada em me movimentar conforme a vontade, as estações, os encontros. Curtir a liberdade e a leveza que só uma viagem independente e sem data de volta proporciona. Acabei passando quatro meses na Colômbia e outros quatro no México, países pelos quais me apaixonei. Vendi brigadeiros na praia para juntar grana. Fiz aulas de dança, de percussão, de teatro. Construí casas de barro. Voluntariei. Troquei trabalho por estadia. Escrevi como nunca. Muitas perguntas e brisas me acompanharam neste caminho.
Quando se fala em viagem, se fala muito em jornada de autoconhecimento e viagem para dentro de si. Realmente olhei profundamente para mim, mas também muito para fora. E o limiar – tão largo e borrado – entre os dois. Em tempos como o nosso, acredito que há de se estar atenta e forte para essa via dupla. Qual é o nosso lugar no mundo? O que estamos fazendo com ele?
Me vi investigando o que é ser uma mulher latino-americana de mais de 30 anos, viajando sozinha, movendo-se pelo nosso continente. A resposta é múltipla, processual e fragmentada. Existem muito mais mulheres viajando sozinhas do que homens, por sinal. Alguns acreditam que isso acontece porque nós mulheres nos trabalhamos mais como pessoas. Problematizações de gênero, etárias, culturais, históricas. Ambientais! Minha relação com a natureza ganhou uma magnitude tremenda. É tanto download que falta disco duro e a gente transborda: em texto, foto, gravações, vídeos, conversa, música, poesia. Todo mundo vira meio artista e meio antropólogo enquanto viaja. Ou pelo menos deveria.
Uma das principais luzes que acenderam dentro de mim foi quando senti na pele, bem de perto, a precariedade. Constantemente presente. Tensa. Tive, como nunca, a plena consciência dos meus privilégios, mas também o senso de pertencimento à raiz latina comum, manifestada na desigualdade nossa de cada dia. Nossa veias abertas, já diria Galeano. Um insistente exercício de ética me acompanhou. Convivi com pessoas que estavam mochilando por falta de opção de vida, a maioria deles sul-americanos. Mal tinham para onde voltar. É gritante a diferença desse viajero para o mochileiro europeu, australiano ou norte-americano. Gastando em moedas que valem mais de quatro vezes as nossas, as viagens dos backpackers gringos são um passeio gostoso com algumas curiosidades, muitas aventuras e certamente alguns perrengues, todos contornáveis graças às suas contas bancárias, seus equipamentos da melhor qualidade e suas vidas estáveis lhes esperando no Hemisfério Norte. White people problems. Já para o viajante médio latino-americano, o buraco é bem mais embaixo.
Viajei com muita gente que sobrevivia com o dinheiro do dia
Eu me sentia, muitas vezes, num limbo: empatizava e convivia muito mais com os sudacas, pois sentia uma história sócio-política compartilhada, além da latinidade cultural e sua malemolência. Tinha suado muito para estar ali e contava cada moeda que saía da carteira. Minha realidade é a de uma mulher brasileira, portanto, latina. Ainda assim, por pior que fosse o problema a ser enfrentado, eu sabia que poderia contar com um caixa automático na maioria dos casos, como os gringos. Eu falo bem inglês. Eu tenho faculdade e pós-graduação. E se desse uma merda homérica, eu voltaria para o Brasil. Mas viajei com muita gente que sobrevivia com o dinheiro do dia. Às vezes eram R$ 6. Era preciso ganhar cada centavo. Isso sim é viver no limite. Isso sim é se aventurar. Aprendi muito com essas pessoas.
Esse estilo de viagem, a precária, é o que nos leva à conexão mais brutal com os destinos. Pois quando se viaja com muito pouco, dependemos dos outros, contamos com o acaso, é preciso se virar, trabalhar, negociar, acampar, dormir de favor, não dormir. Aceitar. Estamos vulneráveis. É preciso se abrir de um jeito que a gente nunca se abre, em nome da troca. Tecemos redes de acolhimento, mas também noção de autocuidado e prudência. Aí é quando a magia acontece: roçamos a vida de pessoas – e elas nos atravessam. Exercitamos um olhar humilde, generoso, aprendiz e muito presente. A viagem precária é menos vantajosa e mais igualitária, menos previsível e mais arriscada.
Como voltar para nossas vidinhas abastadas cheias de desnecessidades e ruído enquanto ignoramos o que é viver com o mínimo? Voltamos ao início da jornada: é preciso ter consciência da nossa inseparabilidade do mundo. Não se trata de viver ou morrer abraçados em culpa. Quanto de verdade somos capazes de suportar? Como se age a partir dessa verdade? Ou ainda: quantos têm a coragem de fazê-lo?
A maior pergunta ainda ecoa por aqui: o que se faz com tanto aprendizado ao longo de uma viagem como essa? O que fica? Será que voltar significa que ela tem um fim? Para mim, a volta é temporária, uma preparação para seguir viajando, de outra maneira. Ainda questiono o que é possível transmitir ao outro a partir do que experienciei. Muito além do registro pela simples memória (que também seria legítimo), cheguei à conclusão de que minha escrita constrói cartografias dessa passagem, pois criar narrativas exige coragem.
Carolina De Marchi é viageira, jornalista, gestora de projetos e produtora cultural latino-americana. Aprendiz de poeta, amante de sotaques, pessoas e boas histórias. Poderia ser cônsul ou trabalhar no circo. Teima em (r)existir no Brasil, por ora
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