A vida da atriz

Entre malabarismos e momentos maravilhosos, Isabel Guéron reflete sobre a paixão pelo ofício em tempos de editais e vaquinhas virtuais

12.09.2018  |  Por: Isabel Guéron

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A vida da atriz

Eu tinha virado meu Kikito de cabeça pra baixo. Numa dessas entressafras longas. Próximo compromisso certo era lá na frente, uns três aluguéis entre um trabalho e outro. E aquela estatueta dourada parada na prateleira, sorrindo, me olhando sem piscar. Impliquei.

Não sei explicar muito bem por que, mas impliquei. E num rompante, talvez influenciada pelos festejos juninos, peguei o prêmio, amarrei pelo pé e pendurei. Tipo um Santo Antônio do campo profissional.

Ficou até bonita minha instalação. Ele pendurado numa pequena escada de madeira, apoiada na parede. Por baixo uma luz através de uma luminária de palha.

Como um altar às avessas no canto da sala.

É que às vezes a vida prática, fora da fotografia, fica muito confusa. E isso de não ter religião (que graças a Deus, sou agnóstica) me possibilita criar diferentes rituais. Raul Seixas por exemplo já cansou de me salvar de depressão pós-teste: seja entoando Tente Outra Vez aos berros para esquecer aquele longa maravilhoso que eu quase fiz, ou ouvindo Mosca na Sopa em looping enquanto reescrevo o projeto da minha peça para o quinto edital. Tive também a fase de dizer “sim” para tudo, levando ao pé da letra a sugestão do roqueiro baiano, topando o que aparecia de trabalho. O que durou até aquele filme suspeito de roteiro duvidoso, quando eu disse um não irresponsável, mesmo no cheque especial.

Certa vez ligaram de uma revista. Eu tinha feito uma novela, então a repórter queria saber qual era meu próximo trabalho. E eu respondi nenhum. E ela como assim? E eu disse nenhum por enquanto, acontece, é muito comum. Ela ficou desapontada. Porque não pode falar isso, não pega bem. Depois eu aprendi que tem que dizer que está com um projeto incrível para esse ano mas por enquanto não pode contar. Não importa se é verdade, o que vale é a notícia, me disse a empresária. A mesma que me sugeriu peitos novos de silicone.

– Vai ser uma mudança boa, você vai ficar mais mulherão.

Ela devia estar certa, mas eu preferi seguir com meus peitinhos anos 70 e fechar sozinha meus contratos. Devo ter nascido na época errada.

Senti isso anos atrás. Quando eu estava aprendendo o ofício, mesmo antes da universidade, fui um dia ver a Cleyde Yáconis falando para jovens atores. Tive vontade de ser antiga, dos elencos grandes, das companhias. Uma peça atrás da outra, sem atravessadores. Sem precisar escrever a justificativa do seu projeto em 350 caracteres. Nem fazer vaquinha virtual. Porque não é um leão por dia. É a selva inteira. E bem vestida!

Outro dia eu li a postagem de uma amiga. Atriz estupenda, cheia de estatuetas para virar de cabeça pra baixo. Ela dizia que estava felicíssima com a quantidade de coisas lindas acontecendo nas telas e nos palcos. As personagens incríveis que a cercaram no último ano. Só faltava conseguir fechar as contas do fim do mês. Porque na vida cotidiana não tem permuta, artista não paga meia. E existem momentos em que falta grana pra comprar o vestido da noite da premiação.

Mesmo assim a gente vai. Porque tem alguma coisa de dependência com essas pessoas que cercam esse ofício. Essas tábuas e essa poeira entranhada. Tem uma sensação inexplicável de alcançar cada pessoa do público que ri, que chora, que aplaude no final.

Houve um tempo em que me perdi. Angustiada com tudo sendo tão diferente do que eu pensei. Tão mais difícil. E enquanto chorava tentava me lembrar quando foi que abandonei a ideia de ter uma Kombi e sair por aí numa trupe. Quando foi que os videobooks e telefonemas para produtores de elenco ganharam o espaço que tinham na minha vida. Desde quando eu quero sair na capa de alguma revista? Por que eu tenho que ir naquela estreia se eu prefiro ver a peça outro dia, sossegada, com meu casaco de moletom?

Não preciso. Aprendi com o tempo a separar o desejo dos outros do meu. A expectativa que cerca essa profissão, todo esse entorno e esse glamour de mentira. Isso de não poder falar a verdade para parecer super bem-sucedida, para sair sorrindo na fotografia e postar no Instagram. Depois dos 40 é impossível não olhar para si, não perceber a urgência das vontades verdadeiras. Porque eu sou feliz é no ensaio, na busca, no caminho. Nas relações profundas que se configuram nas coxias. Nos amigos que me salvam depois da peça numa conversa de bar.

E semana passada, depois de uma noite sendo salva por amigos do tempo da escola de artes cênicas; de ouvir e contar histórias maravilhosas de turnês e elencos; de temporadas de sucesso e de fracasso; entrei em casa e desvirei minha estatueta dourada. Porque no meio de tantos malabarismos para seguir vivendo disso, há momentos maravilhosos. Tem alguém que de vez em quando sopra no meu ouvido: vai em frente, vai na sua.

Tem o inesperado.

2 Comentários

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2 respostas para “A vida da atriz”

  1. Samantha Hughes disse:

    Lindas palavras Bel! Eh isso aí, seguir em frente e fazer o que ama!

  2. Mariana Stolze Custódio disse:

    Ser artista é um estado curioso: ao mesmo tempo que é algo inerente a quem o é, é também uma reafirmação diária. Eu sou artista. Eu ainda sou. Eu continuo sendo. Apesar de tudo. E principalmente por isso tudo. Como também cantou Raul: Eu é que não me sento no trono de um apartamento com a boca escancarada cheia de dentes esperando a morte chegar. Quem sabe, no fim das contas, a gente é que estava de cabeça para baixo e o Kikito em pé? De todo modo, segue firme. Segue, que é só por você que o sol se espalha assim.

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