Algumas observações depois de sete anos frequentando apenas homens gays

A figura da garota heterossexual imersa na cultura LGBT tem como predecessoras ícones como Madonna, Cher e Liza Minelli

05.06.2018  |  Por: Maria Clara Drummond

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Algumas observações depois de sete anos frequentando apenas homens gays

credito Marcela Scheid

Semanas atrás, fui encontrar uma amiga para chorar minhas pitangas por conta de coração partido. Falávamos sobre os estereótipos femininos, como a basic bitch, a maniac pixie dream girl e aquele em que nós nos enquadrávamos, a fag-hag – este último, o mas ininteligível para nosso público-alvo, o homem heterossexual. “Pois é, nós somos a Barbra Streisand…”, disse eu, esperançosa, pensando em The Way We Were. “Não, Clara, nós somos ainda mais esquisitas. Nós somos a Liza Minelli”, respondeu a sempre precisa Bia Falcão.

Fag-hag é um termo que inicialmente seria pejorativo: a garota que só anda com homens gays. Quando me percebi nessa posição, o termo já havia sido ressignificado, e eu o ostentava com orgulho. Existe uma longa tradição de fag-hags a partir do século XX: Madonna, Cher, Barbra Streisand, Elizabeth Taylor, Judy Garland – que passou a faixa para sua filha, Liza Minelli. Essas celebridades de peso são uma inspiração para a cultura drag queen. Já as demais mortais foram muito bem representadas por Grace Adler, a fag-hag judia do clássico seriado Will and Grace, que abriu portas para essa pauta no mainstream.

Não é preciso ser a pessoa mais observadora do mundo para entender o porquê desse preconceito inicial. Afinal, quem nunca ouviu uma patricinha sem noção dizendo que estava “louca para ter um melhor-amigo-gay”? O cinema reforçava esse estereótipo com personagens-token que serviam apenas como interlocutor dos dilemas da protagonista. Por muito tempo, a figura do melhor-amigo-gay foi considerada quase como um pet cuja função seria acompanhar a mulher às compras, ao cabeleireiro, e dar conselhos amorosos. Em suma, uma forma de objetificação que generaliza uma minoria ignorando suas diferentes subjetividades.

Depois da faculdade, realizei o sonho do melhor-amigo-gay-próprio (rs), sete anos depois é comum eu ser a única mulher numa festa, ou até mesmo a única mulher na minha própria festa

Não vou mentir: já fui uma dessas meninas que nutriam certa “homofobia do bem” – se é que isso existe. Mas, por favor, deem-me um desconto, eu tinha 12 anos. Depois da faculdade, realizei o sonho do melhor-amigo-gay-próprio (rs), sete anos depois é comum eu ser a única mulher numa festa, ou até mesmo a única mulher na minha própria festa.

Muito se fala da misoginia no universo gay, principalmente dentro do recorte masculino, branco e cisgênero. Um dos pontos centrais dessa crítica é o hábito de homens gays tocarem o corpo de uma mulher sem consentimento. É como se o subtexto fosse: já que eu não me atraio sexualmente por você, posso apertar seus peitos e bundas à vontade. Esse tema já foi problematizado em vários ensaios em sites feministas.

Eu, que fui criada como católica praticante, vejo essa dessacralização do corpo nas amizades como positivo, que me libertou de diversas neuroses. Acredito que colocar o corpo feminino como tabu seja um desserviço. Por ter sido uma adolescente e jovem adulta reprimida, minha jornada é rumo a uma liberação sexual cada vez maior. Fiquei feliz quando meu melhor amigo um dia disse: “Clara, você parece um viado que acabou de sair do armário.” Interpretei isso como um passo importante nessa trajetória. Mas ainda fico incomodada quando homens heterossexuais fazem comentários sobre meu corpo sem consentimento, mesmo que eu esteja sem sutiã ou tenha postado nudes nas redes sociais. E, convenhamos, estou certa de me incomodar.

Da mesma forma, admiro a dessacralização da linguagem por parte dessa comunidade como forma de militância. Os termos outrora usados como ofensas foram ressignificados como algo a se ter orgulho. Ao meu ver, LGBTs subvertem de maneira extremamente inteligente o politicamente correto, usando aqueles códigos ao seu favor, e ganhando a simpatia da população para suas causas. Eu acredito nessa estratégia de militância: bridging (ou, em português, criar pontes) é estabelecer canais de comunicação além do círculo restrito dos diretamente interessados numa agenda. O contrário seria bonding, que reforça vínculos identitários mesmo que à custa de sectarização. Mas, muitas vezes, quando ensaio essa argumentação, me dizem que isso é exclusivo do setor masculino cisgênero, por estar mais perto do privilégio que os demais.

Não raro, percebo a mesma afirmação saindo da boca de diferentes fag hags, eu inclusa: “Eu não sou uma menina, eu sou um viado!” Mas quando usei o termo viado junto com amigos paulistas, tive todas as cabeças viradas para mim em reprovação: “Clara, só nós podemos usar essa palavra.”

Para muitxs amigxs, manter amizades com homens heterossexuais sequer é uma opção, justamente por conta desses micromachismos que são muito atenuados no universo LGBT

Nessa inserção cada vez maior no mundo gay pude ter um vislumbre de como seria um universo sem gênero. Para mim, a diferença de tratamento é gritante. Raras vezes sou silenciada ou menosprezam minhas opiniões. Como sou uma garota extremamente opinativa que adora falar, esse ponto me é delicado. Quando eu era mais nova e insegura, sentia que eu era tratada de maneira muito condescendente por homens HT. Hoje, talvez não só eu tenha me tornado mais autoconfiante acerca das minhas opiniões, como também os homens estão mais vigilantes com seus comportamentos machistas, mas volta e meia caras se demonstram afrontados por mim apenas por eu discordar deles, ou colocar na mesa argumentos que eles não conseguem rebater, principalmente quando na frente de mais pessoas. Eu me desacostumei com esse tipo de tratamento. Sempre levo um susto até porque sempre quando isso acontece é em ambientes que considero progressistas.

Para muitxs amigxs, manter amizades com homens heterossexuais sequer é uma opção, justamente por conta desses micromachismos que são muito atenuados no universo LGBT. Mesmo assim, percebo que quase todos meus amigos gays fazem comentários depreciativos sobre as meninas lésbicas quando elas não estão presentes. Um dia, eu perguntei: “Quando eu não estou com vocês, é dessa forma que vocês se referem à meninas heterossexuais?” Ouvi em uníssono um sonoro “LÓGICO QUE NÃO”, seguido de: “Só falamos assim delas, mesmo.”

Quando fui enviar esse texto para meu ~melhor-amigo-gay~ para um básico fact-checking,  recebi a seguinte resposta acerca da lesbofobia: “Amiga, você infelizmente foi cair numa roubada que é o grupo de bichas engraçadas, fervidas e com um ou dois pés na maldade. Existe outro tipo de viado que é amigo de sapatão, mas acho que você nunca conheceu um. É muito raro encontrá-los na balada porque geralmente são mais caseiros e gostam de conversar sobre sentimentos, plantas e gatos.

Então viados que não têm amiga sapatão são mais machistas mesmo (eu incluso e tendo a trabalhar isso). A socialização do viado fervido impede o encontro com o viado-amigo-de-sapatão porque de fato todos estão existindo em espaços divergentes. A única intercessão natural desses tipos de bicha é quando aparece uma daqueles que vai de bicicleta para a balada e usa look modernosa-hippie, ou então certas poucas bichas da arte que transcendem esse lugar de imobilismo”.  Pois é… Ler esses absurdos prova que dispensar um pênis ainda é desacato para uma sociedade tão falocêntrica.

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