Amber Heard, Johnny Depp e a misoginia a olho nu

Independentemente do resultado do julgamento, perdemos essa batalha da chamada guerra cultural

17.05.2022  |  Por: Maria Clara Drummond

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Amber Heard, Johnny Depp e a misoginia a olho nu

Há algo disruptivo na aba “explorar” do meu Instagram. Antes, as imagens eram divididas entre memes, conteúdo sobre séries e filmes, celebridades no tapete vermelho e postagens mais sérias, com viés progressista, feminista, antirracista, etc. Agora, chegou até mim a misoginia que eu achava a que só teria acesso caso voluntariamente entrasse nos redutos obscuros do Reddit e 4Chan. Ora, pensei, que fiz eu para merecer esse tipo de conteúdo repleto de minimização de abuso e culpabilização da vítima? 

Não é preciso ser nenhum Sherlock Holmes: meu interesse casual por celebridades e minhas pesquisas sobre gênero direcionaram para minha página os memes sobre o julgamento Johnny Depp X Amber Heard. Ali, vemos todos os antigos clichês que achávamos que estavam enterrados, como a mulher manipuladora que utiliza seu sex appeal para arruinar o homem – ou seja, uma femme fatale.

O arquétipo da femme fatale era bastante recorrente nos filmes noir dos anos 40 e 50. Os Estados Unidos acabavam de sair vitoriosos da Segunda Guerra Mundial. Durante esses anos, os homens atravessaram o oceano para lutar contra os nazistas, e as mulheres ficaram, começaram a trabalhar, ganhar seu próprio dinheiro. A femme fatale nesse período era uma personagem que falava com o medo coletivo da sociedade em relação a essa mudança de paradigma. O que aconteceria se as mulheres saíssem de casa e tivessem seu próprio dinheiro? E, pior ainda, será que elas fizeram sexo com outros homens enquanto seus maridos estavam longe? 

A femme fatale é materialista e usa o sexo como forma de manipulação. Essa imagem está de acordo com o veredicto da internet a respeito de Amber Heard: “Ela é só uma interesseira atrás de dinheiro que quis subir na carreira e destruir um ícone de Hollywood”, diz um dos memes compartilhados inúmeras vezes – alguns têm mais de um bilhão de visualizações. 

Independente da sentença, jamais saberemos o que aconteceu de verdade entre aquelas duas pessoas. Ainda assim, na ânsia de uma narrativa coerente, com papéis bem definidos de algoz e vítima, a internet já definiu quem está certo, quem está errado – ignorando, inclusive, a possibilidade de os dois estarem errados. Amber Heard não é santa, é possível que seja mesmo uma pessoa horrível, não sabemos. No seu depoimento, ela mesma se coloca como uma pessoa falha. Mas não há lugar para nuance nas redes sociais, só binarismo. 

A obsessão com o julgamento vai um passo além do interesse recente em narrativas estilo “true crime”. Mas, aqui, o arco narrativo se dá em tempo real, feito pelos internautas, sem distanciamento temporal que permite enxergar a situação com mais clareza. 

Impossível não lembrar do caso Doca Street & Ângela Diniz: mesmo condenado por matar sua companheira, ele ainda virou herói dos homens, sucesso entre as mulheres, e ela ficou renegada à vilã, pois seria promíscua. É um caso bem mais grave, é verdade. Johnny Depp não matou ninguém e sequer sabemos se é culpado de algum tipo de violência física. Mas, ainda assim, ambos falam com a nossa insistência histórica de desculpar os homens. 

Os fãs de Johnny Depp chegam até mesmo ao ponto de ignorar provas concretas como mensagens de texto e gravação – ou até mesmo usam essas provas a seu favor, como: “Por que ela estava gravando? Com certeza já tinha segundas intenções!” Aparentemente ninguém nas redes sociais acha perturbador que ele tenha enviado mensagens com o seguinte conteúdo para o ator Paul Bettany: “Vamos afogá-la e depois queimá-la. E depois vou f*der seu corpo morto e queimado para ter certeza que ela está mesmo morta.” 

Quando saiu o filme “Garota Exemplar”, dirigido por David Fincher e escrito por Gillian Flinn (que também é autora do livro homônimo), feministas expressaram preocupação com a personagem feminina, manipuladora a ponto de forjar um estupro. Afinal, acusações de violência sexual ou doméstica falsas são muito raras, justamente pelo escrutínio sofrido por quem denuncia. Mas Amy Dune é uma personagem fictícia, que sim é complexa, cheia de nuances. O livro e filme, ambos sucesso absoluto de público e crítica, suscitaram debates importantes sobre gênero. 

Já Amber Heard é uma pessoa de verdade, pode ser boa e má ao mesmo tempo, cruel em alguns momentos, vítima em outros, e está sendo tratada como uma vilã caricata, simplesmente uma sociopata, alvo de hashtags como #AmberHeardIsALier ou #AmberHeardIsAPsyco. Enquanto isso, Johnny Depp tem seu rosto atrelado a frases inspiracionais, e é visto até mesmo como exemplo. 

A viralização de memes com esse conteúdo gera gatilho naqueles que sobreviveram a situações similares. “A reação vista nas redes socias é um tapa na cara de todas as vitimas e sobreviventes de violência doméstica”, disse Tahawa Harris, líder de um grupo de apoio a sobreviventes na Louisiana, em entrevista para a NBC News. Ou seja, há consequências reais para mulheres do mundo inteiro. Está em jogo um grande retrocesso depois de termos avançado tanto no debate pós Harvey Weinstein. 

Na verdade, esses memes são só um sintoma, não são necessariamente sobre Johnny Depp ou Amber Heard. A popularidade de celebridades dialoga com o momento cultural em que vivem. Não é sobre o que elas são e sim o que elas representam. No caso, esse julgamento tocou na ansiedade em relação a novas formas de se relacionar afetivamente, mais igualitárias. 

Às vezes, algum amigo hétero suspira: “Não sei mais como me comportar, o que é apropriado, o que não é, porque agora tudo é abuso.” Ora, respeito não é física quântica. Não é possível que seja tão difícil manter um relacionamento com uma mulher, seja sério ou casual, um casamento ou somente uma trepada, e ser um cara mais ou menos legal, agir de modo mais ou menos digno, na medida das possibilidades emocionais de cada pessoa. Esse sentimento também encontra eco em mulheres, vide a infame carta que cem mulheres francesas escreveram em resposta ao #MeToo, em Janeiro de 2018. 

A vilanização de Amber Heard serve como uma catarse para aqueles que achavam que o mundo era mais simples antigamente, quando o pessoal não era político. Antes, uma jovem atriz no início da carreira seria considerada sortuda ao atrair a atenção de um ícone de Hollywood. Afinal, é praticamente um conto de fadas. Hoje, levamos em consideração que tamanha disparidade de poder pode tornar um relacionamento um inferno. O sonho deu lugar à realidade. O que era considerado romantismo 20 anos atrás virou alerta de perigo – a ressignificação do enredo de muitas comédias românticas é um bom exemplo. 

Eu não sei a verdade sobre Johnny Depp e Amber Heard. É possível que ela seja uma versão em carne e osso de Amy Dune? Sim, é possível. Eu só realmente sei de alguns fragmentos de sua vida conjugal apresentadas no julgamento. E também sei que o conteúdo das redes sociais privilegia alguns aspectos em detrimento de outros a fim de criar determinado arco narrativo. Infelizmente, o arco narrativo escolhido pelo público é o mesmos dos incels, masculinistas, e demais homens que clamam por “men’s rights”. Independentemente do resultado do julgamento, perdemos essa batalha da chamada guerra cultural. 

 

Maria Clara Drummond é jornalista e escritora, autora dos romances “A Realidade Devia Ser Proibida” (Companhia das Letras, 2016), “A Festa É Minha e Eu Choro Se Eu Quiser” (Guarda Chuva, 2013) e “Os Coadjuvantes” (Companhia das Letras, 2022)

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