Amor é barbárie

Quando chega ele muda tudo, mas não mata nada, principalmente os desejos, e, mais do que qualquer coisa, só persiste se houver coragem

20.03.2019  |  Por: Paula Gicovate

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Amor é barbárie

Clara Mazini / Piscina

Todos os dias ele acorda e olha para mim em pé encarando um espelho algoz – minhas linhas e dobras, o mapa que o tempo desenhou. O feminismo que liberta, mas nem sempre é acompanhado de autoamor.

Ele diz “Você é linda” enquanto eu sento para comer um croissant esquecendo o drama de um minuto atrás – mais pelo meu fraco por glúten do que por acreditar nele. Eu não tenho fechado a calça jeans, mas é cada bolo que ando fazendo. Se eu pudesse, só lia e cozinhava. Ele diz que por ele eu só fazia o que me faz feliz.

É tão dolorido o amor quando ele sai de casa e eu sinto saudade. É tão doido o amor quando logo depois eu me acostumo com a ausência e danço pela casa antes de sair para o trabalho. Mais tarde ele chega, pergunta o que eu quero jantar, mas eu queria ter continuado aqui, rodando pela sala e escolhendo outros homens e mulheres que abririam a porta da nossa casa e me tirariam para dançar, e depois me tirariam a roupa.

É tão instável, o amor. Quando eu era pequena disseram que era um sentimento tão forte que quando chegasse me acompanharia por toda a vida. Quando fiquei adulta o amor chegou, mas não era invencível como disseram, e quando acabou levou tudo o que tinha sido construído – levou casa, cozinha, quarto, estante de livro, álbum de casamento, um naco de carne, dois terços do coração e um pedaço daquele autoamor que eu tento reconstruir comendo croissants crocantes quando tenho vontade.

Mas um dia, numa brecha do acaso e porque é teimoso, o amor voltou sorrateiro em forma de um par de olhos cor de mato, o próprio coração meio manco, meio enfaixado, trazendo consigo a sequela de seu Vietnã particular.

Entre sabotagens e tréguas, nos apaixonamos.

Quando dei por mim já ocupávamos o corpo um do outro, e o mesmo apartamento. E fomos ficando, ficando, até comprarmos em 24 prestações esse sofá azul que agora enfeita a sala – porque o amor tem que durar até lá, e quando acabar, a gente parcela uma nova coisa.

Com ele eu aprendi que doideira mesmo é acordar todo dia com a mesma pessoa e dividir as contas e a louça da cozinha, que o amor é barbárie e quando chega muda tudo, mas não mata nada, principalmente os meus desejos, e, mais do que qualquer coisa, ele só persiste se houver coragem.

E você tem que ver a afronta que a gente é quando anda de mãos dadas no meio do caos.

Paula Gicovate é escritora e roteirista

5 Comentários

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5 respostas para “Amor é barbárie”

  1. Amanda disse:

    Lindo.Com uma precisão e delicadeza, que me tocou nesse exato momento de recasamento com meu grande amor.

  2. oprol evorter disse:

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  3. Bárbara disse:

    Me identifiquei tanto. Costumo falar que a gente tem que durar pelo menos até acabar de pagar a mesa da sala de jantar hahahaha depois vamos comprar as cadeiras e por aí vai

  4. Ananda disse:

    Wow. Seu belo texto falou comigo em muitos trechos.

  5. Ju disse:

    Coragem.. é preciso coragem.. e haja croissants ou cookies ou sorvetes…

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