Amor entre amigos

A amizade como relacionamento cada vez mais prioritário partindo dos exemplos de 'Friends' a 'Frances Ha'

04.04.2018  |  Por: Maria Clara Drummond

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Amor entre amigos

É provável que quem nasceu durante os anos 80 tenha crescido assistindo a Friends. Apesar de datado, com piadas preconceituosas que não passariam no teste do tempo, é extremamente competente ao nos fazer rir, e funciona também como uma mininovela, em que acompanhamos de perto os dramas pessoais dos personagens. A premissa é a mesma de várias outras sitcoms: aquele momento da vida adulta em que seus amigos são a verdadeira família. Boa parte das piadas são estruturadas a partir do uso da linguagem de casais para falar de amizades. É como se a tese final fosse que as verdadeiras histórias de amor são entre amigos, baseadas em senso de humor e conexão emocional, bem mais do que sexo.

Atualmente, Friends é criticado por sua falta de diversidade e por seus personagens que, apesar de um tanto neuróticos como toda boa comédia pressupõe, também são extremamente normativos. No final do seriado, a maioria estabelece uma família tradicional, e são obrigados a enfim botar a amizade em segundo plano. Quinze anos depois do último episódio, acredito que cada vez é mais inverossímil um casamento de várias décadas que nem o de nossos avós, com um retrato posado em frente a uma escadaria, com a matriarca cercada de uma pequena multidão de filhos e netos.

Ao contrário, percebo cada vez mais um aumento de pessoas que vão contra a corrente, e escolhem suas amizades próximas para serem sua família oficial, dividindo moradia mesmo depois dos 30 anos, não necessariamente por falta de grana. Na comunidade LGBT, talvez isso ocorra porque o plano de filhos não é tão presente. No mundo heterossexual, acredito que exista uma grande descrença com o amor romântico, e uma menor tolerância para aturar abusos emocionais e relacionamentos tóxicos. Um bom exemplo vem do próprio Friends. Ross e Rachel eram o ícone definidor do ethos romântico nos anos 90. Hoje, muitas coisas são inadmissíveis, como Ross se incomodar com a carreira bem-sucedida de Rachel, que ameaçava a superioridade intelectual que ele exercia sobre ela.

Amizade garante certa estabilidade afetiva justamente por sua definição não monogâmica e assexuada, livre do narcisismo da exclusividade e da idealização extrema que só causa frustração

“Na nossa idade, alguém continua namorando um cara mesmo sabendo que ele é um babaca?!”, uma grande amiga me perguntou. Com a conscientização a respeito desses padrões de comportamento nocivos, a resposta é não. Sexo é um assunto que pode ser resolvido com relativa facilidade, com uma menor moralização acerca da one-night-stand, e o advento do Tinder e demais redes de pegação, como os próprios Instagram e Facebook. É verdade que daí sai muito sexo fajuto. Mas, cedo ou tarde, isso também ocorre em relacionamentos românticos.

Amizade, ao contrário, garante certa estabilidade afetiva justamente por sua definição não monogâmica e assexuada, livre do narcisismo da exclusividade e da idealização extrema que só causa frustração. A amizade é livre e fluida de uma forma orgânica que nenhum romance pós-moderno jamais conseguirá atingir. É por isso que uma traição de amizade é tão mais dolorosa que uma decepção amorosa. Nós nos entregamos com muito mais facilidade a amigos – quem nunca contou sobre sua vida inteira, com todos os segredos inclusos, para um amigo recente, até mesmo quem acabou de conhecer? No amor romântico, é comum o oposto acontecer, com cada passo sendo pensado e repensado com receio e esmero, como se qualquer deslize possa colocar tudo a perder; a insegurança reina na maioria das etapas, como se a infidelidade estivesse sempre à espreita, ou, pior ainda, o desamor. Na amizade, o oposto acontece, com a certeza de que aquelas pessoas estarão juntas na velhice, relembrando os velhos tempos.

Numa das cenas mais famosas de Frances Ha, a protagonista que dá título ao filme versa sobre como seria seu relacionamento amoroso perfeito: o casal estaria numa festa, trocaria olhares, mas não de forma possessiva, mas porque ali existiria um mundo secreto, inacessível  para os demais convidados. No final do relato, ela suspira: “Bem, talvez por isso eu esteja solteira.” Durante o filme inteiro, nós vemos o mundo secreto que ela divide com sua melhor amiga Sophie: elas contam histórias uma para a outra, fantasiam com um futuro em que elas serão ricas e famosas e terão amantes no lugar de maridos. “Tell me the story of us.” Quando Sophie se muda, Frances tenta recriar esses mesmos rituais tão específicos com sua nova amiga, sem sucesso. Afinal, o que é a amizade se não uma linguagem secreta? No filme O Abecedário de Giles Deleuze, o filósofo vai além e diz que a amizade é uma pré-linguagem: “Não tem nada a ver com ideias em comum e sim com se entender sem precisar se explicar.” No filme, Frances diz: “Sophie e eu somos a mesma pessoa.”

Frances Ha é um filme redondo em seu propósito. Na primeira cena, Frances conversa com o namorado, que sugere que eles morem juntos. “Não posso, já moro com a Sophie.” O namorado acertadamente responde: “Você pode, mas não quer.” Para Frances, aquele namoro era secundário se comparado com sua amizade com Sophie, mas essa prioridade não se mostra recíproca. Da mesma forma que Friends, o filme é recheado de situações românticas clássicas transportadas para o universo da amizade. Quando Sophie, depois de brigar com seu noivo, vai à busca de Frances, elas reiniciam seus rituais, e, antes de dormir, bêbada, Sophie murmura: “Eu te amo.” No dia seguinte, Sophie não está mais lá, apenas um bilhete pedindo desculpas por ter vomitado na lixeira, sugerindo uma amnésia das declarações da noite anterior. Frances, então, põe-se a pateticamente correr atrás do carro da amiga, gritando seu nome. A última cena mimetiza o ideal de relacionamento amoroso descrito anteriormente por Frances: numa festa, ela encontra Sophie, elas trocam olhares, se reconhecem possivelmente da forma descrita por Deleuze, e aquele mundo secreto volta à tona, embora de maneira mais amadurecida.

Muitos filósofos e escritores versam sobre a superioridade da amizade diante dos outros afetos. Jamais me esquecerei de um breve texto da Noemi Jaffe, publicado em seu blog circa 2013, reinterpretando aquela famosa passagem de O Pequeno Príncipe: “Por outro lado, esse ‘tu te tornas eternamente responsável por aquilo que cativas’, é bem careta. Cativar é tornar cativo, aprisionar. É a definição clássica, grega mesmo, de paixão – uma doença que aprisiona o sujeito. Daí que cativar não tem nada a ver com amizade, que é, por natureza, livre. Assim sendo, sugiro: “Tu te tornas temporariamente irresponsável por aquilo que libertas.” Essa sim é a definição perfeita da amizade.

1 Comentários

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Uma resposta para “Amor entre amigos”

  1. Vitória Cabral disse:

    Texto massa

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