Amor entre mulheres: você já ouviu essa melodia?

O livro 'O Ano em que Morri em Nova York', de Milly Lacombe, vai ser adaptado para o cinema pelas mãos de Nanda Costa, para engrossar a lista de produções que representam as narrativas femininas

27.05.2019  |  Por: Gabriela Borges Mariana Lemos

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Amor entre mulheres: você já ouviu essa melodia?

Estávamos ali, três mulheres num café, região central de São Paulo, fazendo um leve esforço para lembrar quantos livros ou filmes tínhamos como referência de boas histórias entre mulheres, fossem elas de amor, amizade, familiares – qualquer uma. A lista é pequena.

Nosso encontro com a escritora Milly Lacombe aconteceu para conversar sobre a adaptação para o cinema de seu livro O Ano em que Morri em Nova York (Editora Planeta). Seus direitos foram comprados Kiki Lavigne, Patricia Andrade e Nanda Costa que vai produzir (em uma coprodução com a Conspiração), protagonizar e roteirizar (junto com Patrícia) a história de uma mulher em sua jornada de autoconhecimento e cura.

A narrativa começa a partir de uma desconfiança de traição e “da exata sensação de estar morrendo, após o fim de um casamento importante”, conta a autora. O livro apresenta um casal de mulheres e seu cotidiano. A partir dali, mostra a rede de cuidados, formada sobretudo por mulheres, que fez com que a personagem principal compreendesse profundamente os caminhos que tinham levado aquela relação a terminar e também a beleza em se deixar doer para ir de um lugar incômodo para um lugar melhor.

Não é por acaso que a relação seja entre mulheres – Milly é uma mulher lésbica. Mas esse não é o ponto central da história. Para ela, o livro é sobretudo feminista. “É uma história que tem várias relações entre mulheres –casais, ex-casais, irmãs, amigas, mãe, filha – sem a interferência de homens, sem figuras de autoridade masculina, sem a necessidade de se erotizar para o masculino do mundo. Ainda que não levante uma bandeira feminista de forma direta, o livro pode ser lido dessa forma. Eu gostaria que fosse lido dessa forma”, comenta. “São sensações e sentimentos universais. Todo mundo dói nos processos de fim e recomeço, mas conto isso sob uma perspectiva feminina, a partir de outros olhares femininos.”

Nanda Costa se interessou por essa perspectiva. Recentemente, a atriz e agora produtora e roteirista tornou público seu relacionamento com a percussionista Lan Lan e vem se deslocando dos rótulos. “A gente quer contar a história de um amor muito intenso, muito lindo, muito forte. Não importa se é um casal de duas mulheres, dois homens ou um casal heterossexual. É uma história de busca pelo amor, esteja esse amor na outra pessoa ou na gente mesma.”

Sentimos falta de ver bem representadas nossas vivências, nossas dores e amores

Ambas exaltam a importância da naturalização do relacionamento não-heteronormativo. “Quis trazer para o livro quase uma banalização do relacionamento em si. Tem muito cotidiano ali: trabalho, família, rotina entre amigas, reforma de apartamento, falta de grana, contas a pagar”, conta Milly. “A gente, como artista, tem um papel importante nessa busca pela liberdade de ser, de expressar as subjetividades. Tenho falado e mostrado minha relação exatamente como ela é, verdadeira, honesta e, hoje, mais relaxada nessa família em que eu e a Lan estamos nos transformando. É importante, sabe? Quero que as pessoas vejam que isso é possível e natural”, diz Nanda.

A produção desse filme gera expectativa porque é fundamental acompanhar e assistir a novas histórias de mulheres. Sentimos falta de ver bem representadas nossas vivências, nossas dores e amores. Histórias reais ou de ficção que não sejam contadas apenas por homens brancos, heterossexuais e cisgêneros, como acontece na maioria das vezes. Assim como histórias de pessoas negras, LGBTQI+, entre tantas outras.

Essa narrativa contada por eles tem um impacto tão grande nessa construção de referências representativas que fica difícil mencionar as boas histórias de relações entre mulheres no cinema e na literatura. Ou que passassem no Teste de Bechdel: ter pelo menos personagens femininas com nomes, que conversem entre si e que o assunto seja sobre qualquer coisa, menos homem. O teste surgiu em 1987 pela cartunista Alison Bechdel, para ironizar como Hollywood sub-representa as mulheres, e ainda se faz necessário.

Azul É A Cor Mais Quente, por exemplo, filme lembrado por Milly e por Nanda, tem toda a beleza da história em quadrinhos original, escrita por uma mulher. Mas as práticas adotadas na execução do filme foram duramente criticadas pela opinião pública pelo viés machista, de opressão sobre os corpos das atrizes na busca pelos ângulos ideais para o olhar do diretor, Abdellatif Kechiche.

Para gente ir se preparando para ver O Ano em que Morri em Nova York nas telonas, fizemos uma lista dos filmes e livros de que gostamos. Por mais Millys, Nandas, Dees, Alisons escrevendo, produzindo e filmando nossas histórias!

 

FILMES

Pariah
Alike (Adepero Oduye) é uma adolescente que está descobrindo sua sexualidade e construindo sua identidade: as coisas de que gosta, o que curte vestir e o que quer ser e fazer na vida. Tudo isso ao mesmo tempo em que lida com a pressão familiar para que corresponda às expectativas de seus pais. O filme é inspirado na experiência pessoal da diretora, Dee Rees, mulher negra e lésbica.

Carol
Ambientado na década de 50, conta a história de Carol Aird (Cate Blanchett), uma mulher que está se divorciando do marido, quando conhece – e se apaixona – por Therese Belivet (Rooney Mara). Quando o marido de Carol descobre, ameaça tirar a guarda da filha dos dois, inclusive proibindo as duas de se encontrarem. Carol e Therese, juntas, embarcam em uma viagem de carro para descobrir como enfrentarão seus dramas. A obra foi indicada a seis Oscars, incluindo Melhor Atriz (Cate Blanchett), Melhor Atriz Coadjuvante (Rooney Mara) e Melhor Roteiro Adaptado, e teve cinco nomeações ao Globo de Ouro.

Amor por Direito
Laurel (Juliane Moore) e Stacie (Ellen Page) construíram uma vida juntas e são felizes, mesmo em uma sociedade que ainda as obriga “discrição”. Quando Laurel descobre que tem uma doença terminal, pede para que sua esposa receba os benefícios da pensão da polícia, por onde trabalhou por 23 anos, mas o estado recusa o pedido. Elas iniciam, então, uma batalha para ter seus direitos reconhecidos no judiciário como qualquer outro casal. O filme é baseado em uma história real, retratada também no documentário Freeheld, vencedor do Oscar em 2008.

Imagine Eu e Você
Rachel (Piper Perabo) está às vésperas de seu casamento com Heck (Matthew Goode) quando conhece Luce (Lena Headey), a florista do casamento. Elas se sentem atraídas imediatamente e Rachel fica em dúvida se deve continuar seu relacionamento com Heck ou se permitir viver com Luce. É uma comédia romântica clichê, mas com um casal de mulheres.

Desobediência
Adaptação do livro de Naomi Alderman, este filme conta a história de Esti (Rachel Adams) e Ronit (Rachel Weisz), amigas de infância que eram apaixonadas. Quando o pai de Ronit morre, ela volta à comunidade judaica ortodoxa da qual fugiu e reencontra Esti, casada com seu primo Dovid (Alessandro Nivola). A reaproximação das duas as faz voltarem sentimentos e desejos do passado. A história se desenrola a partir daí.

Desejo Proibido
Com Sharon Stone e Ellen DeGeneres no elenco, esse filme traz três histórias de amor entre mulheres, em épocas diferentes (anos 50, 70 e 2000). O filme apresenta mulheres que se amam e que, cada casal em seu tempo, lutam para poder viver com dignidade e respeito. A obra não deixa de lado as críticas a uma sociedade que exclui mulheres lésbicas, mas tem também uma perspectiva positiva, reconhecendo os avanços ao longo dos anos. O elenco ainda conta com Michelle Williams, Chloë Sevigny e Vanessa Redgrave.

Extra off-cinema: The L Word
Esta série é um divisor de águas na representação da cultura lésbica e bissexual na TV, contando o dia a dia de uma turma de mulheres lésbicas e bissexuais de Los Angeles. Como disse Milly Lacombe, “eram nossas histórias, nossos clichês, nossos hábitos, nossos detalhes. Foi a primeira vez que isso foi esmiuçado na TV. Antes, só havia Ellen DeGeneres na TV, que passou por poucas e boas”. Mesmo com críticas importantes, como a falta de diversidade entre as mulheres, o seriado foi um sucesso e deixou a mulherada sem chão quando acabou. A boa notícia é que um reboot vai estrear no próximo outono americano.

Portrait de La Jeune Fille en Feu
O filme da diretora francesa Céline Sciamma acabou de ganhar o prêmio de melhor roteiro no Festival de Cannes 2019. Drama histórico sobre a relação entre duas jovens que também aborda, nas entrelinhas, a oposição entre o que é uma obra produzida por artista homem e o que é uma produzida por artista mulher.

My Days of Mercy
Outro filme que estamos na expectativa de assistir no Brasil, um drama lésbico com Ellen Page e Kate Mara. Enquanto milita contra a pena de morte, à qual seu pai está condenado, Lucy (Page) conhece e se apaixona por Mercy (Mara). A direção é de Tali Shalom-Ezer.

LIVROS

O Ano em que Morri em NY
Romance de estreia de Milly Lacombe, traz a história de uma protagonista que é casada com a mulher que ama, mas vê seu mundo desabar quando suspeita de uma traição. A angústia passa a rondar o casal e, a partir daí, o drama se desenrola numa bonita busca pelo autoconhecimento e amor genuíno por outra pessoa, mas principalmente por si mesma. Com viés autobiográfico, é uma história densa, de reflexões difíceis, mas com doses perfeitas de humor no caminho. Uma boa viagem que todo mundo devia fazer. Um clássico pra chamar de nosso.

Tudo nela Brilha e Queima
Livro de estreia de Ryane Leão, mulher negra, poeta e criadora do perfil Onde Jazz meu Coração, com mais de 420 mil seguidores no Instagram. “A poesia é minha chance de ser eu mesma diante de um mundo que tanto me silencia. Nela eu falo sobre amor, desapego, rotina, as cidades que nos atravessam, os socos no estômago que a vida dá, o coração desenfreado, a pulsação que guia as estradas, os recomeços, os dias, as noites, as madrugadas, os fins, os jeitos que a gente dá, as transições, os discos, os tropeços, as partidas, as contrapartidas, os pés firmes que insistem em voar, e tudo isso que é maluco e lindo e nos faz ser quem somos.”

AMORA
Neste livro de contos, Natalia Borges Polesso traz histórias de amor entre mulheres. Mas não só isso. Também fala de encantar-se, das surpresas e medos das descobertas. O encontro consigo mesma, sobretudo quando ele ocorre fora dos padrões normativos, pode trazer desafios ou tornar impossível seguir sem transformação. É necessário avançar, explorar o desconhecido, desestabilizar as estruturas para chegar, enfim, ao sossego de quem vive com honestidade.

Um Livro de Colorir sobre Como é Bom Ser lésbica
Esse livro de Camila Cuqui traz em suas páginas a possibilidade de colorirmos corpos, vulvas e cenas lésbicas. Desenhos lesboeróticos. “Amores do primeiro ao último desenho”, descreve a autora.

Fun Home: Uma Tragicomédia em Família
Premiada graphic novel de Alison Bechdel, uma das quadrinistas mais importantes de todos os tempos. Romance autobiográfico, mostra o caminho percorrido pela autora ao se descobrir e assumir lésbica, e a dolorosa e comovente relação com o pai, morto em circunstâncias que poderiam indicar um suicídio, entre muitos livros e arte. É um livro extremamente poderoso.

 

Gabriela Borges é jornalista, mestre em Antropologia e viajante inveterada. É criadora da Mina de HQ, projeto sobre a representação feminina nas histórias em quadrinhos e de divulgação de HQs feitas por mulheres 

Mariana Lemos é jornalista de formação, mas trabalha com várias coisas relacionadas a diversidade, curadoria de conteúdo e marketing de influência. É lésbica, noiva de Gabriela Souza e vai começar a arriscar um texto ou outro aqui.

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