Antídoto pra falta de inspiração
Depois do sucesso póstumo na internet, com direito a várias citações falsas, Caio Fernando Abreu é reeditado em livro de contos
22.08.2018 | Por: Gaia Passarelli
Às vezes eu me pego em longos períodos sem escrever nada. Melhor dizendo, até escrevo as coisas que escrevo para pagar boletos: posts anônimos, listas de coisas a fazer, traduções sobre novas atrações turísticas. Mas escrever, escrever mesmo, é outra coisa – e ficar sem escrever nunca tem jeito de férias. Pelo contrário, é sempre meio triste e acontece por falta de tempo, por excesso de redes sociais, por um tipo de preguiça que parece doença. Em vez de acumular, o assunto dentro de mim vai morrendo porque dona inspiração é uma madame caprichosa e se você não dá atenção ela deixa de te frequentar. Inspiração dá trabalho, você tem que cuidar, mimar, agradar.
Daí, quando a inspiração some, seca, voa pra vizinhanças menos estéreis, quem me socorre é Caio.
Caio Fernando Abreu é daqueles escritores mais amados do que conhecidos. Muito presente na internet (uma conta ativa no Instagram com seu nome tem mais de cem mil seguidores), sua obra como contista era difícil de achar em livrarias e tinha certa aura cult. Daí que a Companhia das Letras acertadamente reúne agora em Contos Completos a produção de Caio em formato breve. Estão na coletânea o conteúdo integral de seis títulos: Inventário do Ir-remediável, O Ovo Apunhalado, Pedras de Calcutá, Morangos Mofados, Os Dragões Não Conhecem o Paraíso e Ovelhas Negras, todos publicados entre 1970 e 1995. O livro tem uma bela foto de Caio meio dandy em roxo e laranja na capa e traz ainda quatro contos inéditos em livro e textos de Italo Moriconi, Alexandre Vidal Porto e Heloisa Buarque de Holanda destacando a atualidade da obra de Caio.

Astrologia, bebida, censura, homossexualidade, afeto, contracultura, AIDS, cinema, poesia, militares, muito bolero, Walt Whitman, whisky nacional sem gelo nos arredores da Praça Roosevelt de madrugada. Os assuntos e cenários de Caio são costurados em descrições sucintas de personagens com os quais eu me identificava sem entender direito aos 13 anos (a morena brejeira, pisciana confusa) e que hoje entendo sem me identificar totalmente (a mulher com mais de 30 anos que já passou por várias barras, que habita o mesmo conto da brejeira: “Os Companheiros, uma história embaçada”).
O que Caio pensaria dos dias de hoje, das personagens de hoje, da São Paulo de hoje? Da juventude publicando fotos com frases dele que, assim como acontece com Clarice e Verissimo, nem sempre são dele mesmo? Caio acharia fofo um gif com quote? Caio curtiria estrangeirismo? Caio não viveu pra ver, morreu nos anos 1990, mas deixou registrado muito do que achava sobre sua produção, comentários que a Companhia incluiu no volume atual. E o que Caio pensava das ruas, das bichas, do piano de Satie, de apartamentos com vista para telhados de zinco, de amores sem chance de vingar, e como ele via o carnaval, a violência, o sexo, a ditadura militar, o Rio Grande do Sul, a London London, o que ele pensava sobre o amor, a vida, o universo e tudo o mais — isso Caio deixou registrado.
E quando esqueço como registrar o que estou observando e sentindo na São Paulo de chumbo e fuligem de 2018 que eu amo tanto, é pra ele que eu volto. Pra ele que me fez querer escrever, ele que viveu na minha cabeceira na edição de 1982 de Morangos mofados que roubei da minha mãe, ele que sabia pisar nos cantos escuros e voltar para dormir na rede sob o sol.
Esse Caio, “o escritor da paixão”, o “autor mais visceral da contracultura brasileira”, o “fotógrafo da fragmentação contemporânea”, lembrado com amor por todo mundo que o teve por perto, esse Caio que escrevia com verdade sobre solidão e sexo e medo e pombos e sobre Calcutá, esse Caio agora mora ao lado da minha cama, entre meu Kindle e em cima da coletânea da Dorothy Parker. Tenho certeza de que ele ia adorar.
Gaía Passarelli é jornalista e escritora, autora de Mas Você Vai Sozinha? (Globo Livros, 2016). Nascida e criada em São Paulo, mora num prédio velho da Bela Vista com o filho, três gatos e uma crescente coleção de guias de viagem. Você a encontra no twitter @gaiapassarelli e no site gaiapassarelli.com
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