Arquivo vivo
A cineasta Helena Solberg, que dirigiu filmes sobre a 'questão da mulher' durante todas as ondas do feminismo, escreve sobre a própria obra enquanto reconhecimento da caminhada percorrida pelas ativistas até aqui, e divide com Hysteria seu primeiro curta, 'A Entrevista', que já discutia o tema em 1966
09.03.2018 | Por: Helena Solberg
Resolveram fazer uma retrospectiva dos meus filmes. É uma honra, mas também me faz pensar que eu já era, estão me arquivando! O que não é verdade! Fiz um filme sobre aborto no ano passado e estou com vários novos projetos. É verdade que tenho muitos filmes sobre a “questão da mulher.” Meu primeiro, o curta A Entrevista, foi focado nessa questão, embora eu não me colocasse como “feminista” na época.
Queria fazer filmes sobre coisas que me interessavam e pronto. Eu era a única cineasta mulher no meio de um grupo de cineastas homens. E, embora homens, muitos me ajudaram. Consegui fazer meu primeiro filme e não parei desde então. Meu interesse pela condição da mulher é visceral, já que sou mulher. Mas quis também entender outras estruturas de poder que nos oprimiam, pois vivi aqui em 1964 o golpe militar e assisti às consequências brutais do Ato Institucional nº5.
A Entrevista, de 1966, foi uma tentativa de examinar minha formação burguesa, entrevistando um grupo de moças cujos depoimentos desconstroem a imagem romantizada de uma noiva que se prepara para o casamento. Criei essas imagens porque as moças se recusaram a ser filmadas, pois iam falar sobre assuntos-tabus como sexo, virgindade, casamento etc. Isso foi dois anos antes das ativistas do Women’s Liberation Movement promoverem a icônica manifestação contra o concurso “Miss America”, queimando seus sutiãs, revistas femininas e outros objetos de fetichização da beleza feminina.
Vivi nos anos 70 e 80, nos Estados Unidos, a segunda onda de um movimento feminista vigoroso e emocionante. The Emerging Woman (A Nova Mulher), que dirigi em 1974, foi inspirado por essa vivência. O filme revisita 170 anos de história, desde 1800, do movimento feminista na América e na Inglaterra, através de diários, manifestos, reportagens, cartas e livros de ativistas.
The Emerging Woman foi o primeiro de alguns filmes que realizei com o coletivo International Women’s Film Project e o que depois me levou a querer investigar os nossos países latino-americanos, que mereciam um olhar sobre a condição da mulher. Nesse contexto, fiz A Dupla Jornada (1975), sobre as condições da mão de obra feminina na Argentina, México, Venezuela e Bolívia, e Simplesmente Jenny (1977), sobre três jovens que vivem em um reformatório boliviano. Elas contam suas histórias sobre prostituição forçada e ainda idealizam casamentos e revelam seus sonhos românticos.
Ao longo desses anos fiz filmes tratando de assuntos políticos-sociais filmados na Nicarágua, Chile, Brasil, Equador, Europa, Estados Unidos.Carmen Miranda: Bananas Is My Business é um filme que juntou vários assuntos e preocupações: a trajetória da mulher, relações entre as Américas, preconceitos etc. Seguiram-se Vida de Menina, Palavra Encantada e Alma da Gente.
Em 2017 eu revisitei o universo feminino em Meu Corpo Minha Vida, e entrei de cabeça em um dos debates mais importantes hoje no Brasil: a descriminalização do aborto. Toda a narrativa é conduzida pelo caso de Jandyra Magdalena dos Santos.
Acompanho a evolução de importantes pautas históricas do feminismo e seu avanço através das décadas e vejo como mudaram nossos espaços de protesto. Geração após geração, o movimento feminista contemporâneo tomou diferentes formas de mobilização e de reflexão sobre seu significado histórico.
As denúncias feitas em meus filmes e os desdobramentos do movimento buscam encorajar mulheres não apenas a compartilhar histórias, mas prestar testemunho da ação coletiva de protestos – dos mais radicais e midiáticos aos calorosos debates em redes sociais. O que segue em jogo são as inúmeras causas e as estratégias de mulheres que escolhem não mais se calar.
Continuar fazendo cinema me permite viver o presente e seus desafios. Estamos assistindo agora ao que parece ser uma terceira onda de um feminismo revigorado que deve muito aos movimentos anteriores e, nesse sentido, alguns de meus filmes podem contribuir para o reconhecimento da caminhada já percorrida anteriormente por outras mulheres.
Como disse a Beauvoir, “a mulher não pode estar condenada a somente repetir a vida com o seu corpo, a se repetir no tempo, mas sim reinar sobre o momento e forjar o futuro”.
Helena Solberg é cineasta e ganhou em 2018 a primeira retrospectiva integral de seus 17 filmes nos CCBBs de Rio de Janeiro, São Paulo e Brasília
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