As zonas cinzentas dos linchamentos virtuais
Filme 'Aos teus Olhos', de Carolina Jabor, joga na roda o linchamento virtual. Tema também de livros e séries, o assunto merece reflexão
12.04.2018 | Por: Maria Clara Drummond
Em Aos teus Olhos, filme de Carolina Jabor que estreia nesta quinta-feira, Rubens (Daniel de Oliveira) é um professor de natação que é acusado nas redes sociais de ter beijado na boca um dos seus alunos, Alex. A trama, baseada na peça catalã Princípio de Arquimedes, de Josep Maria Miró, poderia ser uma versão século XXI do caso Escola Base, quando um casal foi acusado sem provas de ter abusado sexualmente de seus alunos. Era São Paulo pré-internet: 1994. A denúncia foi explorada de forma altamente sensacionalista por todos os jornais. E, mesmo depois de inocentados, o casal teve sua vida destruída para sempre, com a perda de emprego, isolamento da comunidade e doenças como fobia e cardiopatia.
O caso da Escola Base é estudado nas faculdades de Direito e Jornalismo. É um exemplo da importância da presunção de inocência e da responsabilidade que é publicar notícias em um jornal. De acordo com uma célebre frase atribuída a Voltaire: “É preferível absolver um culpado que condenar um inocente.” No entanto, hoje o ethos preza mais pelo justiçamento e punitivismo. Já que cada um tem sua própria página, que quase equivale a um mini-jornal dado o alto poder de propagação, não seria exagero dizer que na atualidade a denúncia por si é também o castigo. Principalmente quando falamos de crimes sexuais, percebe-se que foi invertida a máxima filosófica de Voltaire, e a leitura das estatísticas nos ajuda a entender como isso aconteceu: apenas 3% das ações penais de cunho sexual são feitas a partir de denúncias falsas.
E esse é ainda o tipo de crime mais subnotificado do mundo. Isso ocorre por diversos motivos, como vergonha, sentimento de culpa, medo que o depoimento da vítima seja desacreditado, e que os acusados saiam impunes. No Canadá, um juiz perguntou a uma garota de dezenove anos que fora estuprada: “Por que você não manteve as pernas fechadas?” Se em 2017 isso ocorre num país supostamente evoluído em relação aos direitos humanos, imagina no resto do planeta. Dessa forma, é compreensível a enorme desconfiança das mulheres na Justiça clássica, e a procura por outro tipo de tribunal, mais eficaz na punição, porém uma versão moderna da praça pública dos séculos passados, agora a um clique de todo mundo.
Numa jogada interessante, provando que moralismo não tem viés ideológico, cada pequena atitude do suspeito é usada contra ele, curiosamente de modo similar ao argumento machista: ‘Mas por que você estava com vestido curto na rua tarde da noite?” Rubens tem muitos comportamentos inadequados. Outros, não
Em 1994, os professores da Escola Base processaram por danos morais os veículos Folha de São Paulo, Estado de São Paulo, Globo, Veja, Isto é, Record, SBT, entre outros. Hoje, a correção por eventuais injustiças é mais difícil de ser rastreada, já que as redes sociais transformam a todos em pessoa pública, e as notícias viralizam através de milhares de perfis. A polarização, guerra cultural e aumento das fake news não ajudam nesse cenário. Nos últimos anos, temos visto todo tipo de denúncia, desde delitos muito graves, e que mesmo assim até pouco tempo atrás seriam ignorados por causa da impunidade e estrutura de poder vigente, até outras questões em que é aceso o debate do que é considerado assédio sexual ou apenas babaquice masculina, como o recente caso Aziz Ansari.
Além de Aos teus Olhos, outras duas obras de ficção me chamaram a atenção por tratar do mesmo tema: o episódio do seriado Girls chamado American Bitch, e o romance O Tribunal da Quinta-feira, do Michel Laub. Nos três casos, o acusado em questão é um homem na faixa dos 40 que se relaciona com garotas vinte anos mais jovens – no filme, Rubens tem uma namorada de 19. Além de estarem na chamada “crise de meia-idade”, também se situam numa geração imediatamente anterior aos millennials, interagindo com estes, mas sem dividir esse novo código de valores, incluindo uma moral muito específica no vocabulário. Ou seja, posterior à geração em que tudo era permitido e anterior à disseminação do termo “o pessoal é político”. Acredito que são os homens nessa faixa etária mais vulneráveis. É como se subitamente esses superpoderes que são os privilégios de gênero tivessem-lhe sido amputados. Só que, no caso, não enxergam esses superpoderes como privilégios, e sim como direitos exercidos na vida cotidiana, ou parafraseando a famigerada carta das francesas, “direito de importunar”.
Dessa forma, Rubens é construído de maneira complexa, ora parecendo um misógino repulsivo, ora um bom professor que ajuda um garoto em crise e se preocupa com as crianças. Afinal, os seres humanos são mesmo múltiplos
Numa jogada interessante, provando que moralismo não tem viés ideológico, cada pequena atitude do suspeito é usada contra ele, curiosamente de modo similar ao argumento machista: “Mas por que você estava com vestido curto na rua tarde da noite?” Rubens tem muitos comportamentos inadequados. Outros, não. Algumas dessas atitudes são condenadas por uma sociedade retrógrada e homofóbica, como aconselhar um aluno de dezesseis anos a declarar seu amor para outro rapaz, e outras atitudes são julgadas por esse novo código moral, em que não é mais aceitável fazer observações sexuais sobre meninas de 12 anos, mesmo que ditas em privado para um colega, com intenção apenas de jogar conversa fora.
Dessa forma, Rubens é construído de maneira complexa, ora parecendo um misógino repulsivo, ora um bom professor que ajuda um garoto em crise e se preocupa com as crianças. Afinal, os seres humanos são mesmo múltiplos. O filme não nos dá uma resposta final, e em vez do conforto de entendermos a situação como num círculo completo, deixa apenas com a perplexidade latente, sem sabermos o que realmente aconteceu – como, aliás, é a vida. Depois de refletir, Rubens não me pareceu culpado de ter beijado o aluno na boca. Pois bem, eu diria: às vezes, um babaca é apenas um babaca, e não necessariamente um criminoso. E a ficção, com seus misóginos que existem apenas por centenas de minutos ou páginas, nos dão a possibilidade de abrir nossa mente para uma miríade de nuances, que muitas vezes o calor e o peso da realidade não permitem.
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