Assassinou uma. Ameaçou todas
'Cada vez que um homem mata uma mulher é como se estivesse dando uma lição em todas nós', diz Selva Almada citando Rita Segato. De passagem pelo Brasil, a escritora argentina conversou com Hysteria sobre seu livro 'Garotas Mortas' e conclamou os homens a entrarem nos debates sobre feminicídio
07.08.2018 | Por: Maria Clara Villas
Por dia, 12 mulheres são assassinadas na América Latina. O dado do Atlas da Violência de 2017 é assustador. E não precisamos ir longe: há uma semana nos deparamos com as cenas da paranaense Tatiane Spitzner sendo espancada nas áreas comuns do prédio de classe média pelo marido, Luís Felipe Manvailer, minutos antes de ser assassinada por ele. E tão assustador quanto o crime é sermos testemunhas (atrasadas) de tudo o que aconteceu. As imagens do circuito interno de câmeras, somadas a vascularidade da web, joga a crueza dos fatos na cara da sociedade.
Nem sempre foi tão explícito assim. Mas foi também pela imprensa que a argentina Selva Almada soube do assassinato de uma jovem de 19 anos, ocorrido no interior da Argentina, nos anos 80. A notícia a tocou tanto que alguns anos depois começou a investigar mais a fundo o assunto e reuniu relatos de outras mulheres também periféricas que tiveram sua vida interrompida pelo machismo. Pouco mais de 30 anos depois do crime, a escritora lançou o livro Garotas Mortas, em que narra a história de três vítimas de feminicídio ocorridos em seu país. O livro foi lançado em 2014 na Argentina e chegou ao Brasil no mês passado pela editora Todavia.
Selva saiu a campo para entrevistar pessoas que conheciam as garotas e pesquisou jornais da época: “Fiquei curiosa para ver como os jornais tratavam esse tipo de crime, e a parte triste é que muita coisa continua do mesmo jeito”, ela diz. Os tipos de preconceito e estereótipos eram bem parecidos com os de hoje em dia. Apesar de se basear em uma pesquisa jornalística, a voz dada pela autora é bem literária. Ela explica que usou ferramentas de ficção para poder se permitir licenças e não tratar o tema somente com a dureza dos fatos.
A primeira vez que Selva escutou o termo feminicídio foi há um pouco mais de dez anos e, desde então, tem se aprofundado nas causas feministas – a escritora manteve o lenço verde, símbolo da luta das argentinas pela legalização do aborto, amarrado no pulso durante toda sua visita ao Brasil, onde participou da Flip.
Apesar de a lei que prevê prisão perpétua para feminicídios ter sido aprovada na Argentina em 2012, o número de casos não diminuiu. Selva aponta que os crimes estão mais violentos: “Cada vez que um homem mata uma mulher, é como se estivesse dando lição em todas nós”, ela diz, apontando uma tese da teórica argentina Rita Segato. “É uma ameaça para todas e a única maneira de combater isso é ir às ruas e lutar cada vez mais.”
A autora conversou com a Hysteria sobre a luta feminista na Argentina, o processo de escrita de seu livro e machismo.

A escritora argentina Selva Almada
Por que você decidiu escrever sobre essas três histórias?
O caso de Andrea aconteceu perto da minha cidade quando eu era pequena e me impactou demais. Mas ao longo dos anos escutei outras histórias semelhantes. Como não queria contar só aquela história, juntei mais duas de mulheres pobres que foram mortas na mesma época. Casos que nunca foram resolvidos e não eram conhecidos fora do lugar onde ocorreram, pois ainda não havia internet.
Como você fez a pesquisa para o livro?
O trabalho de campo é parecido com o de um jornalista que escreve um livro de investigação. Fui aos locais onde elas viviam, entrevistei pessoas que as conheciam, pesquisei jornais da época. Mas quanto mais jornalístico ficava, menos eu gostava. Comecei então a trabalhar com um relato mais ficcional, que pareceu fluir muito mais. As ferramentas literárias permitem licenças que amenizam a dureza e aridez dos fatos. Os dados continuam reais, fruto da investigação, mas me permiti reconstruir algumas cenas, com base em conversas e relatos. Assim como as vítimas, eu morei em um pueblo, tínhamos idades próximas, vivíamos a mesma época.
Quando você escutou a palavra feminicídio pela primeira vez?
Na Argentina feminicídio não era um termo muito usado, ouvi pela primeira vez há cerca de dez anos. O jornal Página 12 foi um dos primeiros a usar. A partir daí, foi se tornando mais popular e hoje todo mundo usa. Gente comum sabe o que é. Popularizado, as pessoas entendem que é um crime de um tipo específico.
A luta contra o machismo já evoluiu muito. E vemos mudanças. Mas o feminicídio segue sendo uma questão. Como você vê isso?
Desde 2012 temos uma lei que pune feminicídio com prisão perpétua na Argentina, mas ela parece não amedrontar os criminosos. Por causa de um crime dessa natureza tivemos em 2015 a marcha Ni Una a Menos. Temos algumas mudanças, avanços, o movimento de mulheres cresceu e conseguimos chegar na discussão da legalização do aborto. O feminismo cresce dia a dia entre as mulheres mais jovens. Uma mudança importante. Mas, por outro lado, o feminicídio não muda, as mortes estão até mais cruéis. A teórica Rita Segato diz: “Cada vez que um homem mata uma mulher, está querendo dar uma lição para as outras.” A excessiva crueldade tem a ver com isso, não está dizendo algo só para essa mulher específica, mas sim para todas nós. A única maneira de combater é sair para a rua e lutar, cada vez mais.

Quando a masculinidade se torna tóxica? Como dobrar os machismos cotidianos que você tanto relata no livro?
Isso é o mais difícil de resolver, de controlar e até de detectar. O machismo é muito astuto, tem maneiras às vezes muito sutis de manipular as mulheres.
Qual a reação dos homens ao seu livro?
Em geral tenho mais leitoras e pouco registro de homens. Na Argentina os homens leitores têm preconceito com as autoras. Sei que o tema de Garotas Mortas parece de interesse apenas para mulheres, mas essa visão é errada, já que os homens são parte do problema. É urgente que eles se vejam como parte do machismo. Precisam reconhecer que se são homens heterossexuais têm privilégios, sim, e é preciso abandoná-los. Fora que eles também sofrem as consequências do machismo.
O fato de a Argentina ter tido uma presidenta (Cristina Kirchner) mudou algo em relação ao tratamento dado a crimes contra as mulheres?
Foi durante o governo Kirchner que a lei do feminicídio foi instaurada, mas no debate do aborto ela não se posicionou a favor da legalização. Ela não era feminista. Mas tivemos avanços, como a lei que regularizou o casamento gay, a autorização para a troca de nomes nos documentos de pessoas trans. Mudanças importantes para minorias mais vulneráveis.
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