Assistir a filmes e séries em ‘fast-forward’: fim dos tempos ou tempos modernos?

Ferramentas de aceleração oferecidas pelas próprias plataformas são a última polêmica no mundo do cinema – mas já que estamos aqui vamos falar também dos filmes formulaicos?

27.11.2019  |  Por: Maria Clara Drummond

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Assistir a filmes e séries em ‘fast-forward’: fim dos tempos ou tempos modernos?

Em outubro, a Netflix anunciou que planeja acrescentar à plataforma uma ferramenta que permita aos espectadores assistirem aos conteúdos em velocidade avançada. Isso já é possível em players como YouTube e iTunes e em extensões do Chrome e Firefox. Imediatamente, vários cineastas se manifestaram contra a possibilidade, por motivos óbvios. Uma boa história é pensada com uma série de riquezas de detalhes que iriam passar batido se assistidas em fast-forward. Não é preciso ser nenhum purista da alta cultura para concordar que essa não é uma boa ideia.

No mesmo mês, Martin Scorcese causou polêmica por suas opiniões sobre outro tema, mas que dialogam com a crise gerada por novos formatos cinematográficos. Em entrevista para a Empire Magazine, ele afirmou que os filmes da Marvel “não são cinema”, pois são a mesma história contada várias vezes, seguindo uma única fórmula. Para ele, esse tipo de entretenimento seria algo próximo a um parque temático de diversões. A princípio, revirei os olhos diante da reclamação, afinal trata-se de um ícone do cinema pop, longe de ser um John Cassavettes. Acho inclusive os filmes do diretor meio parecidos, não raro falhos (O Lobo de Wall Street é para ser uma crítica à inversão de valores do capitalismo? Só consigo imaginar milhares de garotos aspirando a vida ali descrita, com profusão de iates, sexo e champagne – mesmo que às custas de fraudes financeiras).

No entanto, um mês depois, o diretor explicou melhor sua posição, levantando bons pontos. O cinema, como forma de arte, está fundamentada no risco. Faz parte do caráter inovador proposto por uma empreitada artística a possibilidade de as críticas especializadas serem positivas ou negativas. Não há como prever, com algo que tenha características inéditas, se a bilheteria será um sucesso ou fracasso. E é exatamente essa exploração do desconhecido que permite a expansão da existência que a arte proporciona.

Já filmes de super-herói são constituídos de pesquisas de mercado, testes antecipados da audiência, para que assim sejam modificados sob medida, para que o público jamais saia da experiência decepcionado, e assim tenha exatamente o que deseja, com suas expectativas plenamente cumpridas. E isso é o oposto do que se entende por cinema como forma de arte.

Cada vez mais, Marvel e DC monopolizam as salas de cinema, com a tentação fácil do lucro certeiro, deixando pouco espaço mesmo para diretores lucrativos, como Joel e Ethan Cohen e o próprio Scorcese. “Sempre houve uma tensão entre os produtores e os artistas, mas hoje não há sequer essa tensão, apenas indiferença à arte”, escreveu.

Filmes de autor soterrados num mar de mediocridade

Martin Scorcese tem um ponto cego que no entanto ele tangencia no seu texto do New York Times. Na hora de criticar os serviços de streaming, ele ressalta que não tem nada contra esse modo de exibição per se, tanto que seu último filme, O Irlandês, foi produzido pela Netflix. É nesse momento que o diretor se acovarda, agindo como um lobista que defende seus próprios interesses, afinal, boa parte dos problemas apontados por ele em filmes de super-herói também se encontram na maioria das produções da Netflix: produtos gerados não por indivíduos criativos que desejam investigar a alma humana, mas por algoritmos de big data. Filmes de autor, como sua própria criação recém-lançada pela plataforma, são exceções, que buscam apenas gerar alguma grife e status, soterrados num mar de mediocridade.

Nesse sentido, a Netflix está pouco se importando com a avalanche de críticas que recebeu de aclamados diretores ao anunciar seus planos de visualização acelerada. A empresa sabe que com a decadência dos cinemas de rua, principalmente aqueles independentes que não pertencem a grandes redes, a telinha do computador é a única opção mesmo para nomes consagrados, como Scorcese. O próprio O Irlandês teve a produção negada por estúdios importantes como Paramount e STX. Joel Cohen explicou a situação para o Los Angeles Times: “A Netflix está gastando dinheiro com filmes que não são grandes franquias de ação, que é o negócio dos grandes estúdios hoje em dia.”

O sucesso Stranger Things, aclamado tanto pelo público quanto pela crítica, é considerado a obra-prima da big data. Tudo ali é pensado para agradar uma geração globalizada que vai desde Memphis até o Méier. House of Cards é outro exemplo de excelência: a equação do êxito ocorreu quando a companhia percebeu que os espectadores da versão original de House of Cards, feita na Inglaterra, também eram fãs de Kevin Spacey e David Fincher – que produziu o seriado.

Normalmente, é mais provável que um seriado seja bem recebido pela crítica que um filme – até porque faz mais sentido investir em dez horas de maratona que num longa-metragem de 90 minutos. É importante notar que filmes aclamados como Roma, de Alfonso Cuarón, são Netflix Exclusive, não Netflix Original – ou seja, a empresa ficou a cargo da distribuição, não da produção. À parte de Scorcese, a maioria dos filmes feitos pela plataforma é praticamente mockbusters – uma criação híbrida de diferentes sucessos já aprovados pelo público.

Em 2013, 75% dos assinantes escolhiam assistir a filmes e séries na base das recomendações. Hoje, não sabemos esse número porque a empresa deixou de divulgar os dados – mas é sintomático que tenha criado um prêmio para o analista que melhorasse as previsões de consumo, o Netflix Prize (cancelado por conta de uma ação jurídica relacionada à privacidade dos usuários apresentada pela Federal Trade Comission). Em 2019, a Netflix teve sua primeira queda em oito anos, muito devido à concorrência de outros serviços similares, mais baratos e com melhor qualidade. Que isso seja um incentivo para menos mockbusters feitos sob medida para consumo fugaz e indiferente à velocidade em que é assistido, e mais cinema de autor, agora órfão da atenção que a grande tela demanda.

 

Maria Clara Drummond é jornalista e escritora, autora dos romances A Realidade Devia Ser Proibida (editora Companhia das Letas, 2016) e A Festa É Minha e Eu Choro Se Eu Quiser (editora Guarda Chuva, 2013)

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