‘Blasfêmea’ | ‘Sou feminista, só não conta pro meu marido’
Antonia Pellegrino reflete sobre a dificuldade em uma mulher se assumir ativista dentro de um casamento consolidado
18.06.2018 | Por: Antonia Pellegrino
Arte sobre foto de Zô Guimarães
“Sou feminista, só não conta pro meu marido.”
A frase que parece piada me foi dita por uma amiga mineira – e o fato de ela ser mineira não deve ser visto como mera curiosidade. A tradicional família mineira é uma das joias da coroa do patriarcado nacional. Ai de quem ousa desafiá-lo. Logo, é mais seguro ser feminista sem que ninguém saiba.
Ser feminista é desvendar os olhos e perceber uma série de opressões com as quais fomos acostumadas a lidar. É pegar uma marreta ontológica e destruir as estruturas que nos constituíram tal como nós somos – porque sim, somos todas e todos machistas, em maior ou menor grau, e em processo de desconstrução (ou não). É se desconstruir para se reconstruir. É uma aventura existencial ao alcance de todas. Um cais onde a gente embarca para uma viagem que não sabemos onde vai dar. Mas que, com certeza, fará nascer uma nova mulher – e um novo homem, e uma forma outra de reconexão entre ambos, seja no trabalho, na família, nas amizades, no casamento.
O casamento é um dos pilares fundamentais do patriarcado. Em termos jurídicos, a união de duas pessoas é um empreendimento empresarial de transmissão de propriedade – no qual a mulher vai dos braços do pai para o do noivo em uma igreja, encenando com pompa e circunstância essa mudança de “dono”. Na operação, muitas vezes, a mulher perde o nome. Abre mão da própria independência para se tornar “do lar”. Deixa de sonhar em ser alguém, para ser mãe de alguéns.
Tornar-se feminista é também refazer as relações de poder que estruturam um casamento. Se apresentar ao próprio marido, depois de anos de uma vida a dois, como feminista, significa refundar o casamento. Significa abrir um processo de mudanças profundas no casal
Evidente que cada vez menos mulheres estão dispostas a embarcar no pacote completo papai-mamãe do casamento tradicional – e que esta estrutura já passou por várias reinvenções ao longo do tempo (e que pode ser delicioso casar, dividir a vida, na saúde e doença, na tristeza e na alegria) – mas é importante entender que, para uma mulher em um casamento consolidado, há enorme dificuldade em se assumir feminista. Mesmo que ela deseje ardentemente o feminismo.
Porque tornar-se feminista é também refazer as relações de poder que estruturam um casamento. Se apresentar ao próprio marido, depois de anos de uma vida a dois, como feminista, significa refundar o casamento. Significa abrir um processo de mudanças profundas no casal. Que pode, ou não, ser bem-sucedido. Que ele pode, ou não, querer. Onde há riscos. E cujo fim do processo pode ser uma relação mais igualitária ou uma separação. Não são muitas as mulheres dispostas a se lançar nesse parto de si mesmas.
Por isso é mais raro vermos mulheres assumirem-se feministas aos 40, 50, 60 anos, do que meninas jovens. Para as jovens feministas, não há risco em assumir-se feminista. Elas são, e pronto. Não há nada a ser negociado. Suas relações vão ser moldadas em bases mais justas, desde o primeiro beijo. Não será preciso o trabalho de mudar estrutura, que uma mulher de 40, 50, 60 enfrentará, necessariamente, se se disser feminista para o marido com quem divide a vida há dez, 20, 30 anos.
Quem se diz feminista mas não conta para o marido não pode ser feminista. Pela simples razão de não ter a coragem de fazer a primeira mudança: em si mesma e ao seu redor. Não digo com isso que exista uma carteirinha para quem é ou quem não é feminista. Essa identidade é conquistada por cada uma, feito a lagarta que se torna borboleta.
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