‘Bohemian Rhapsody’: expectativa proporcional à decepção

Filme sobre a história do Queen não assume uma condução narrativa nítida, não se aprofunda em nenhuma das questões ou conflitos presentes e traz personagens rasos

16.11.2018  |  Por: Yera Dahora

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‘Bohemian Rhapsody’: expectativa proporcional à decepção

Foto de divulgação

Como já diria o taxista tricolor: “A expectativa é o primeiro passo para a decepção.” Grandes expectativas se criam em cima dos filmes biográficos. Já não bastasse o tema, que por si só já levaria muitos ao cinema, vieram os cartazes com cores glamurosas e o trailer envolvente. O espectador espera uma história cativante, emocionante e singular, assim como a história do Queen. Mas, ao contrário da banda, o filme Bohemian Rhapsody é impertinente. O longa-metragem não assume uma condução narrativa nítida, não se aprofunda em nenhuma das questões ou conflitos presentes e é vivido por personagens rasos.

Nos primeiros minutos do filme, conhecemos o jovem que trabalha no aeroporto de Heathrow. Ele tem os dentes grandes e os olhos arregalados: vemos de cara que é muito carismático e cheio de si. Este é o jovem Freddie Mercury (Rami Malek). Em poucos minutos (realmente muito poucos minutos), Freddie Mercury entra na banda de Brian May (Gwilym Lee), conhece uma garota chamada Mary (Lucy Boynton), faz sua estreia nos palcos, convence a banda a gravar o primeiro disco, pede Mary em casamento e a banda se apresenta em cadeia nacional em um importante programa televisivo. Todo esse vômito de acontecimentos, que pretende demarcar brevemente momentos importantes no crescimento da banda e da vida pessoal do vocalista, é como que jogado na tela e não envolve o espectador. O personagem de Freddie Mercury não apresenta, até esse momento, nenhum conflito interno ou externo.

Essa apresentação de Freddie Mercury como um ser já bem resolvido, cheio de si, não nos aproxima de sua intimidade e nem da história a ser narrada. No caso de Bohemian Rhapsody, Freddie Mercury em seus early years parece ser exatamente o cantor que nós já conhecemos, sem dar margem para que ele se desenvolva enquanto personagem e sem trazer novidades ao espectador. A narrativa do filme é toda calcada nessa dinâmica: nada de fato se desenvolve, os acontecimentos se desenrolam soltos sem uma linha discursiva coesa.

Toda essa fase introdutória parece um grande videoclipe das músicas de sucesso do Queen: não há drama, não há história. A partir de algum momento, surgem conflitos como a homossexualidade e logo depois o vírus HIV pelo qual Freddie é contaminado. Todos esses conflitos são apresentados de maneira rasa e solta. Vê-se que a narrativa não é tecida para a articulação dos conflitos, eles são representados de forma vaga. Talvez a questão do casamento com Mary tenha sido de certa forma a mais desenvolvida (embora ainda assim de uma maneira bem precária. Mary é uma parede. Não é possível dizer nada mais sobre ela exceto “Mary é uma mulher loira sorridente que gosta de Freddie”. Mary não tem medos, inseguranças, defeitos ou paixões, não tem nada. E essa crítica se estende para praticamente todos os personagens da história).

O conflito com a família é nítido em todas as cenas em que o protagonista está na casa dos pais: o pai o reprime. Em certo momento, a família some completamente da história. De repente, numa das últimas cenas do filme, Freddie os visita com seu suposto primeiro namorado, o pai o perdoa e o aceita. Simples assim, sem nenhuma curva dramática, nenhum desenvolvimento do personagem do pai. E, de modo geral, a questão da sexualidade está muito simplificada, sem profundidade alguma. O que é no mínimo displicente para quando se fala de um grande símbolo homossexual (sobretudo em tempos atuais). Tanto pela estética quanto pela abordagem simplificada do “sexo, drogas e rock’n’roll”, o filme se aproxima mais de um produto televisivo do que cinematográfico.

Nada caracteriza os personagens da banda, exceto seus cortes de cabelo

Exemplos de relações mal desenvolvidas não faltam: além da familiar, tem o amor de Freddie e Jim, que é pincelado quando o protagonista enfrenta a solidão pós-divórcio e é apenas retomado no fim da história, para concluir a trama em um tom de final feliz. A dinâmica de criação da banda parece harmônica na maior parte das cenas. Há a inserção de alguns momentos de tensão, que, mais uma vez, parecem jogados pura e simplesmente para se ter algum conflito entre a banda: eles não são construídos. Sem contar que nada caracteriza os personagens da banda, exceto seus cortes de cabelo.

Originalmente o personagem de Freddie Mercury seria interpretado por Sacha Baron Cohen, que depois de algum tempo de preparação decidiu sair do projeto por incompatibilidades criativas com os ex-integrantes do Queen, que participaram do processo de produção do filme. Aparentemente, a presença dos músicos da banda corroborou para que o filme tivesse esse distanciamento com os aspectos sórdidos da história real. Além do ator, o filme mudou de diretor algumas vezes. Antes de Bryan Singer, a produtora já havia assinado contrato com Dexter Fletcher, que em pouco tempo preferiu sair do projeto por divergências criativas com o produtor Graham King.

Singer, que assumiu a direção e acompanhou o projeto na maior parte do tempo, foi demitido em dezembro de 2017, quando se ausentou das filmagens por uma semana. Ele alegou a ausência por questões de saúde de familiares. O diretor já havia tido problemas do gênero e faz também parte da lista de acusados de abuso sexual.

Compreendendo melhor o processo de produção do filme, que foi conturbado por conta da demissão do diretor, assim como ter sido acompanhado pelos ex-integrantes do Queen, que aparentemente inibiram intencionalmente a parte obscura e imoral da história da banda, se justifica em parte a impertinência do produto. Essa descontinuidade de direção com certeza ficou impressa no produto final, que entrega um filme vazio de significados e representações, muito aquém da potência que o Queen teve. E parece injusto representar a história de uma banda tão emblemática e pertinente do rock omitindo os aspectos sórdidos que foram certamente cruciais na trajetória do grupo e do vocalista. Independentemente dos aspectos técnicos e conceituais do filme, de uma forma ou de outra, se traz à tona essa figura ímpar que foi Freddie Mercury, despertando interesse por parte daqueles até então mais distantes do trabalho do Queen. Para os que já são fãs, não deixa de ser uma homenagem.

 

Yera Dahora participou do cineclube do Instituto Equipe, é formada em cinema pela FAAP e estudou os filmes de Pedro Almodóvar e comédias românticas americanas dos anos 1990/2000. Trabalhou na área de produção de elenco e assistência de direção de longa-metragem. Fez especialização em roteiro na ROTEIRARIA e inicia sua carreira como diretora 

1 Comentários

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Uma resposta para “‘Bohemian Rhapsody’: expectativa proporcional à decepção”

  1. Antonio Jose de Souza disse:

    Respeito sua conceituada opinião, porém discordo de sua análise.Há de se levar em conta, a licença artística, na construção do roteiro,bem como a fuga da timeline real da história,para ,possivelmente,criar mais impactos no longa.

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