A capa da ‘Time’ é o mínimo
Um pequeno gosto de vitória e, sobretudo, uma lição para a imprensa brasileira. Seguiremos quebrando o silêncio, mesmo sem a glória das capas de revista
07.12.2017 | Por: Renata Corrêa
Um homem, na maioria esmagadora das vezes branco, olha de forma firme e desafiadora para a lente da câmera. Ele parece maior do que é, seu rosto parece carregar o peso do mundo e também o seu triunfo. Está vestido de maneira formal – afinal, ele faz parte do grupo de pessoas que dita as regras e, sabemos, existe um firme código de conduta para fazer parte desse grupo. Uniformes militares e terno e gravata são a regra.
Normalmente é assim uma capa de “Person Of The Year” da revista Time. Premiação tradicional, que desde 1929 destaca uma personalidade que está impactando o mundo. Não necessariamente de forma positiva — Hitler, Stálin e mais recentemente Donald Trump ocuparam esse espaço.
São homens solitários em seu poder, tomando decisões sobre os rumos do planeta e suas guerras. Decidindo quem está na periferia do mundo ou não, quem merece ser bombardeado ou não. Em capa de revista é assim que funciona de forma geral: mulheres belas e homens que têm em suas mãos o poder de decidir que morre e quem vive.
Eu dificilmente me atento para premiações do mainstream. São homens congratulando homens que ganham poder para futuramente congratular outros homens. Além de profundamente tedioso, já faz alguns anos que coisas feitas exclusivamente por homens pouco me interessam. Discursivamente, o masculino deixou de ter grandes coisas para dizer, e percebo que cada vez mais as inovações artísticas, científicas e acadêmicas que me interessam estão sendo construídas, em grande parte, por mulheres.
Então recebi a capa da “Person Of The Year” de 2017.
Mulheres na ‘Time’
Quando vi a capa pela primeira vez, não me impressionei – a onda de denúncias de assédio em Hollywood era obviamente forte o suficiente para coroar o ano em uma importante publicação. E a primeira coisa que me perguntei foi: “Quantos homens estiveram em capas coletivas?” E depois: “Quantas capas da Time homenagearam mulheres?”
Bingo duplo. Contando com a capa de 2017, apenas sete vezes, desde 1929, a Time escolheu mulheres como “Pessoa do Ano”. Dessas sete, três não destacam especificamente uma mulher. Veja: em 1975 a Pessoa do Ano foi “A Mulher Americana”, assim, genericamente. Em 2002, uma capa com o nome de “Whisteblowers” trouxe três mulheres que previram grandes escândalos norte-americanos: Enron, WorldCom e FBI. Já em 2017, a fórmula se aplica novamente.
A Time coloca na capa “The Silence Breakers”. São elas a atriz Ashley Judd, a cantora Taylor Swift, a lobista Adama Iwu, a lavradora Isabel Pascual, a ativista Tarana Burker e a ex-engenheira do Uber Susan Fowler. E… um braço. Um cotovelo. Uma mulher sem identidade que conta sua história de assédio, mas tem medo de que a exposição impacte negativamente a sua vida. Infelizmente, apesar de estar em minoria na capa, ela representa a maioria das mulheres que vivem e caminham neste planeta – aquelas a quem o assédio deverá ser incorporado à sua identidade, sem chance de justiça ou redenção.
Mas refletindo sobre ela, percebo que a capa em si demonstra uma importante mudança de atitude da mídia norte-americana em relação aos casos de assédio. Apenas três anos atrás, a cantora Ke$ha revelou que a pausa na carreira tinha sido motivada por assédios do produtor Dr. Luke. Ela tinha 18 anos quando começou a trabalhar com o sujeito e pediu a quebra do contrato depois de sofrer abusos físicos, emocionais, sexuais e verbais. Lembro bem que a imprensa tratou o caso como um “he said / she said” (ou sejam, dando voz ao acusado e questionando a vítima). E depois de um tempo apenas publicações de cultura pop comentavam eventualmente a história. Ela foi questionada, humilhada e desacreditada em programas de variedades e humor. Apenas em 2017, depois de o caso ser deliberado pela Justiça dos Estados Unidos, Ke$ha pode voltar a se apresentar. A imprensa comemorou o seu retorno. E a capa da Time marcou o encerramento de um ano em que mulheres se recusaram a ser silenciadas. Não dava mais para ignorar esse fato.
Não chega a ser uma vitória. Mas pensando na imprensa brasileira, pensando em Ke$ha, em Maria Schneider e em como os casos de assédio e estupro foram tratados até então, sim, temos motivos para comemorar.
José Mayer e Thogun
Eu estava trabalhando na redação de um programa de humor quando a diretora geral entrou na sala, agitada: “Vocês viram?” Sim, todos nós na redação tínhamos visto o relato de Su Tonani, publicado no blog Agora É Que São Elas. A figurinista contava os assédios praticados pelo ator José Mayer. Depois de algumas horas, o texto foi retirado do ar. A Folha exigia que se procurasse a contraparte. As editoras defenderam que a coluna era um espaço seguro para mulheres e um caso como aquele não deveria seguir linhas editoriais convencionais. Um debate acalorado começou na redação. Um jornalista defendia que sim, deveriam procurar e publicar o outro lado. As editoras argumentavam que não iam publicar a versão do assediador no espaço que deram para a mulher que fez a denúncia. O que era ético nesse caso? Um aviso foi colocado antes do texto e o relato de Su Tonani voltou ao ar.
Os casos de assédio nos colocam diante de novos dilemas éticos e editoriais. A ong Think Olga redigiu um “Mini Manual do Jornalismo Humanizado” – o que muitas mulheres considerariam óbvio, como “não romantizar um caso de estupro”, continua acontecendo continuamente na imprensa, e o manual é bem claro nessas questões. Mas aparentemente os veículos da grande imprensa não o leram.
Alguns dias atrás, um caso de estupro e outro de tentativa de estupro aconteceu no set do filme A Volta. Recebi um WhatsApp de uma integrante da equipe pedindo contatos da imprensa e que eu falasse sobre o caso. Depois de conversar com pessoas que lá estiveram, fiz um texto. O caso ganhou corpo. Soubemos, então, que pelas mãos de uma produtora e um fotógrafo que se recusaram a continuar trabalhando as filmagens foram paralisadas e as vítimas acolhidas e levadas para fazer os procedimentos legais.
A imprensa começou a cobrir a história, dando espaço para o acusado questionar de forma virulenta a conduta moral das vítimas, comentando inclusive coisas sobre a vida sexual delas. O absurdo chegou a tal ponto que um veículo, depois de relatar o caso, encerra a matéria dando informações de onde encontrar o acusado de estupro, o ator Thogun, em uma série atualmente no ar.
Estamos vivendo uma guerra discursiva que ultrapassou a descredibilização da vítima – quando um caso de assédio, estupro e abuso vem à tona no Brasil, percebemos que a velha forma de fazer jornalismo já não serve mais para abarcar as questões éticas e humanas que se apresentam. Temos de um lado uma imprensa tradicional que continuamente usa os termos “crime passional” para falar de um feminícidio ou de “sexo” para falar de estupro, e do outro lado uma mídia independente que se esforça para quebrar o silêncio a respeito desses casos – não só os relatando, mas usando uma linguagem apropriada para que não se confunda nenhum crime de gênero com uma manifestação de paixão ou descontrole.
E qual o tratamento que as Silence Breakers brasileiras merecem?
Nós, as feministas brasileiras
As responsáveis pelas denúncias contra José Mayer e Thogun não mereceram capas de revista. Receberam retaliações, silenciamento e sanções sociais de várias ordens. Felizmente elas continuam a atuar, mesmo sabendo que é uma atividade sem louros, cuja única recompensa é ver a sociedade avançar muito lentamente. As mulheres que rompem o silêncio no Brasil veem o escárnio que é a capa da Isto É, com os tais brasileiros de destaque. Homens brancos, em sua maioria, numa capa que num cantinho se pergunta por que ainda existe racismo no nosso país.
Converso longamente pelo WhatsApp com uma amiga. Ela é uma ativista feminista de grande destaque nas redes, com milhares de seguidores, uma formação consistente e um texto contundente. Ela está entre chateada e puta da vida – perdeu mais um job, pois o cliente a considerou “radical”. As contas estão por um fio.
“Em 2017 é a terceira vez que me acontece”, ela me conta. “A partir do momento em que você abre a boca para defender uma mulher que sofreu assédio, você passa a ser desacreditada junto com ela.” Nos despedimos um pouco mais tristes do que começamos a conversa. Lembro de quando um amigo roteirista me contou no início do ano que eu não fui chamada para um trabalho pois segundo os produtores meu feminismo “impediria que eu soubesse construir uma mocinha”. A justificativa do produtor foi: “Mocinha precisa sofrer, porra!” Felizmente ele está errado.
Mocinha precisa brilhar e é com respiro nesse ambiente sufocante que pego um voo para São Paulo para dar uma aula sobre o O Conto da Aia, a distopia de Margaret Atwood. Livro de 1986 que voltou a ser sensação depois de adaptado para uma série, e que na trama prevê a reação ao que as mulheres estão vivendo no século XXI. Me acomodo em meu assento, e pego a revista da Gol. A capa é a Djamila Ribeiro.
Sua luz é inegável, sua história, inspiradora. Djamila não se cala e segue. E segue dali diretamente para a capa da revista Claudia, que divide com outras brasileiras de destaque. O lançamento do seu livro O que é Lugar de Fala foi um sucesso em São Paulo, e no Rio de Janeiro tomou as ruas. Djamila teve que subir em um banquinho com um microfone no meio do povo. Uma imagem poderosa.
Infelizmente ainda não temos o equivalente à capa da Time para validar a atuação de feministas brasileiras. Mesmo porque, em retrospecto, não somos homens de terno que possuem o poder de vida e morte. Somos mulheres que lutam pelos direitos de outras mulheres. O que temos é, de tempos em tempos, num dia de semana, numa noite quente, uma rua no centro do Rio de Janeiro lotada de gente para ouvir o uma mulher tem a dizer. E isso é uma manifestação de esperança, de mudança, a gota de otimismo necessária para que possamos continuar até sentir a mudança não só na imprensa, mas também nos nossos corpos, já exaustos de lutar.
Renata Corrêa é roteirista, escritora e feminista. Autora do livro Vaca e Outras Moças de Família, colabora com revistas, jornais e a queda do patriarcado
4 Comentários
4 respostas para “A capa da ‘Time’ é o mínimo”
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Ufa! Que ritmo! Tentando não permanecer ofegante! Uma pequena mudança! E lá se vão mais de 50 anos de lutas Feministas? Duro! Hay que endurecerse mismo!
Muito bacana o texto lembrar que existe um “depois” quase nunca tranquilo, na vida das mulheres que denunciam o assédio,e que esse “depois” não envolve só o assediador… Muitas vezes, depois da denúncia, quando não cedemos ao discurso machista dominante que tenta minimizar tudo, perdemos o emprego e ficamos mal vistas pelas chefias e amigos igualmente machistas, ou, no mínimo, alienados sobre essa questão – a grande maioria. Por isso tenho uma sugestão para as mulheres que se dedicam com afinco ao tema do feminismo: que tal elaborar um manual”FAQ” ou “primeiros socorros”, baseado em relatos reais, para orientar e instruir, na prática, as mulheres que são pegas de surpresa por um assédio e não sabem como agir? Nem todos os assédios são definidos em lei como tal, e nem todas tem dinheiro para bancar um advogado para acompanhá-las caso denunciem na delegacia. Importante também que a mulher, ao ouvir de outra uma história pessoal de assédio, procurare oferecer ajuda real (ajudar a achar outro trabalho, indicar umx advogadx que cobre pouco ou que seja solidárix à causa, etc). Ontem encontrei uma ex-colega atualmente envolvida com o tema do feminismo, de quem fui colega de redação nos últimos anos,e ela muito educadamente, e com carinho, me ouviu, concordando com minhas posições diante do assédio sexual e moral que sofri… Mas em nenhum momento perguntou se teria como ela ajudar, ou falou como achava que podia, quando, na realidade, eu sabia que ela poderia tentar. De que adianta feminismo sem sororidade? “Fakenismo” só atrasa o movimento. Importante as mulheres se ajudarem e se defenderem de verdade, seja no trabalho ou onde for.
Como não amar Renata Corrêa???