Como abandonei o ativismo na internet
A jornalista Stefanie Cirne faz um depoimento pessoal sobre sua intensa imersão no universo dos grupos feministas de Facebook – e como se desencantou ao perceber dinâmicas narcísicas e estratégias erradas
25.04.2018 | Por: Stefanie Cirne
Créditos: Camila Novello/Piscina
Faz algum tempo que, quando me proponho a escrever sobre feminismo, preciso enfrentar uma censora um tanto mal-humorada. Para ela, nenhum parágrafo é claro ou sensível o bastante; não há um tema que eu possa tratar com propriedade; nunca li, vi ou vivi o suficiente para falar sobre o que me interessa. No limite, qualquer coisa que eu articule é desnecessária, no mínimo, e um desserviço, no máximo. E o pior é que essa censora sou eu mesma.
Expor essa angústia é atestar inseguranças que só o tempo e a terapia podem resolver. Mas essa faceta politizada do meu superego é ainda outra coisa: o fantasma introjetado da Feminista Média – ou do que Roxane Gay definiria como Boa Feminista –, amálgama de muitos textões, curtidas, comentários, memes e tretas que codificam as normas do movimento para mim e estabelecem os limites do que eu devo e não devo dizer. Quando encaro a página em branco hoje, é o ruído de toda essa informação que sofro para isolar – se não para produzir, para pelo menos ouvir minha própria voz.
Há quatro anos, mergulhar no burburinho das redes era um vício que realmente me mobilizava. Por indicação de uma amiga, entrei no grupo do Think Olga no Facebook, e descobri que discussões e troca de referências sobre feminismo – algo que eu acompanhava entre as americanas do Tumblr – rolavam também em português. Em pouquíssimo tempo, virei moderadora do grupo, ingressei em outros tantos e passei a palestrar sobre conceitos, teorias e debates que galgavam cada vez mais espaço on e offline.
Por meses, aquela Stefanie vibrou com a ideia de estar participando de algo grande, novo e avançado na política contemporânea. No final de 2015, na altura em que a primavera das mulheres ganhou o mainstream, eu já germinava essa crise motivada por um desalinhamento crescente com as (não) estratégias do movimento. As questões surgiram: por que eu me tornei ativista em primeiro lugar? Por que, de repente, isso fazia tão pouco sentido para mim? E por que externar esse desencanto segue gerando tanta ansiedade?
Motivações Narcísicas
Gostaria de poder dizer que, como feminista, eu ajudei a empoderar mulheres, participando de protestos, mobilizando ações comunitárias, colaborando com ONGs, etc. A realidade, porém, é menos nobre: quando não estava em frente ao computador, operando a máquina de textão, estava na universidade lendo sobre gênero, e trocando ideias com professoras e colegas. Trago essa informação não apenas para esclarecer meus privilégios, mas, principalmente, para marcar o caráter pessoal da minha aproximação do feminismo. No fundo, essa incursão sempre foi um movimento de autoconhecimento – e, por isso, os ganhos que derivei dela foram essencialmente egoístas.
Se eu admito isso com franqueza, é também porque vejo valor em uma apropriação individual do feminismo – algo que as ativistas mais exemplares taxariam de libfem. Na minha vivência, as ideias feministas contribuíram para dar sentido a traumas, mágoas, frustrações e travas que, até então, amontoavam-se no canto mais escondido do meu espírito, e governavam aspectos centrais da minha vida. Descobrir que outras mulheres sabiam desses sentimentos – melhor: que os tinham compreendido, superado, conectado a outras questões – foi a descarga de energia que me animou e facilitou acréscimos importantes de conhecimento, consciência e atitude em mim.
Talvez justamente por isso a teoria feminista pareça tão atraente: operando com generalizações, ela providencia categorias (homem, mulher), posições (opressor/oprimido, reacionário/revolucionário) e esquemas claros para tornar a realidade um pouco mais inteligível
Acredito que muitas outras ativistas veem no feminismo um caminho para significar suas experiências, romper com padrões machistas de comportamento, e viver de forma mais livre e autêntica. Mas, olhando para trás, também percebo os riscos e excessos que rondam essa leitura. Eu consegui me situar a partir do movimento porque estava em crise e disposta a acreditar em algo que organizasse meu caos interior. Arrisco-me aqui a forçar um paralelo com religião – no sentido de projetar na política a solução ou a causa de meus problemas. Quando a teoria feminista entrou no meu radar, este contato teve de fato um quê de revelação: aos 21 anos, senti que tinha acessado a inteira verdade sobre as coisas, e, com muita entrega e pouca crítica, passei a aplicar os mandamentos do movimento às minhas relações.
No fundo, todas sabemos que uma teoria identitária não dá conta da nossa vida. Além de mulheres, somos muitas outras coisas juntas – e cada uma delas assume maior ou menor importância em diferentes momentos, nos colocando em constante negociação. E há outras coisas que não têm a ver com identidades sociais, mas com personalidade, caráter, circunstância. Ter uma visão ampla desse todo é um processo gradual e trabalhoso. Saber que eu e todos os outros seres humanos são complexos, com uma história única, cheios de possibilidade e incerteza, não faz nada pelo meu mal-estar existencial, muito pelo contrário. Talvez justamente por isso a teoria feminista pareça tão atraente: operando com generalizações, ela providencia categorias (homem, mulher), posições (opressor/oprimido, reacionário/revolucionário) e esquemas claros para tornar a realidade um pouco mais inteligível, e menos angustiante.
Sem dúvida, esse ordenamento é necessário para pensar a sociedade e suas relações políticas. No meio ativista, o problema surge quando as ferramentas da teoria social são frequentemente acionadas não para falar do Mundo com M maiúsculo, mas do nosso mundinho: do crush escroto, da forma como gozamos, sobre se nos depilamos ou não, e qual a opinião sobre artista X. Em algumas discussões, desenha-se a conexão entre essas trivialidades e algo maior, sistêmico. E na maioria das outras, impõe-se o revés da máxima “o pessoal é político”: uma imensa dificuldade de discernir o que é identidade e o que é indivíduo; o que me afeta por ser mulher e o que me afeta por ser Stefanie; o que se encaixa em um teorema e o que eu distorço para caber nele.
Em 2014, muito da minha euforia fluía de um alívio libidinoso em “estar correta” nos debates sobre feminismo, gênero e sexualidade. Na época, isso não parecia narcisismo ou docilidade, mas uma cruzada íntima para fazer triunfar a Palavra do Movimento. A analogia religiosa é conveniente na medida em que o que eu lia e ouvia de minhas referências assumia rapidamente o status de verdade – sobre o mundo, talvez, mas principalmente sobre a minha vida. Da minha trincheira no Facebook, propagar e proteger essa verdade particular era o grande objetivo: como vejo se repetir com outras ativistas hoje, dúvidas honestas e divergências razoáveis viravam afrontas pessoais, e vários malabarismos retóricos eram feitos para repeli-las. Era válido descontextualizar falas, trechos e textos inteiros; valia descartar argumentos fortes por razões fúteis (quem fala, se usa ou não os termos politicamente corretos, por recusa a ler o que foi escrito); valia enaltecer argumentos pobres por razões igualmente toscas.
De todas as filiações políticas, os movimentos identitários talvez sejam os que melhor manejam nossa necessidade de pertencimento, porque presumem uma ligação essencial entre seus membros
Lembro também da satisfação que sentia ao detectar um deslize machista em alguém ou alguma coisa, e expô-lo nos grupos para secar. Ou quando lograva uma réplica lacradora ainda que pouco substancial. Quando as curtidas e comentários começavam a contar, era preenchida pelo prazer de que sim, eu estava certa na minha problematização – e o eco da minha revolta causava uma sensação inédita de poder e retidão moral. Performar a indignação nas redes sociais serve uma dupla função: reiterar um ethos militante, com jargão, pautas e métodos próprios e, por meio desta postura, credenciar-se junto ao grupo, legitimando a sua autoridade. A aproximação do movimento organizado é, também, outra forma de blindar a nossa posição, já que facilita a “pregação para convertidos” e intimida alguns que, por inocência ou fibra argumentativa, ameaçam a nossa crença.
De todas as filiações políticas, os movimentos identitários talvez sejam os que melhor manejam nossa necessidade de pertencimento, porque presumem uma ligação essencial entre seus membros. Nesse sentido, sua manifestação na era online surge também como um caminho de cura para uma carência espiritual: a de estarmos conectados não somente uns aos outros, mas a um propósito e uma comunidade que parecem ter nos evadido. Isso explica em parte o apelo irresistível de ser incorporado pelo grupo, imagem que subjaz slogans e campanhas de peso nas redes (“mexeu com uma, mexeu com todas”, “#somostodasfulana”).
Quando essa interpretação prevalece, as tentativas de resistir à unificação e preservar o particular (uma nuance, um indivíduo, um caso específico) viram sinais de alienação e até silenciamento, sendo rechaçadas por um arremedo de sociologia no qual a “estrutura” é soberana. Pouco importa, por exemplo, se os signos e práticas da feminilidade normativa empoderaram uma mulher (por falta de palavra melhor, talvez?); importa que “estruturalmente” esses dispositivos de dominação patriarcal não podem ser empoderadores. Da mesma forma, não interessa o contexto e as características de um caso de estupro; interessa que, como um estupro, ele é intercambiável com muitos outros casos distintos e que, para ser efetiva, a reação não tem alternativa senão esvaziá-lo, sublimando-o em algo genérico o bastante para mobilizar (ou acomodar?) todas as demais narrativas. Por via de regra, a tendência é reduzir sujeitos e objetos à essência do movimento – como se essa descaracterização não gerasse também perda de potência.
Aos poucos, reconheci que o movimento estava balizando minhas visões e até meu comportamento fora da rede. A mensagem era clara: para ser uma feminista séria, eu devia liquidar a minha pessoa em um ser 100% político, cuja vida inteira se subordinaria aos paradigmas e ao julgamento da militância. Minhas escolhas estéticas, o entretenimento que eu consumia, as pessoas com quem eu me relacionava, e a forma como eu fazia sexo, eram aspectos que, se minimamente contraditórios, poderiam “cassar a minha carteirinha” – e, por um tempo, meus esforços se voltaram a evitar essa rejeição.
Como podemos neste cenário atravessar tanta futilidade, tanta vigilância, tanta defesa disfarçada de investida, e impulsionar uma frente transformadora? Minha intenção é destacar que estamos tornando a possibilidade de diálogo e síntese cada vez mais remota
Finalmente, compreendi que a fome desse movimento dominante é insaciável. Mesmo tão treinada para servir e agradar, sempre haverá um erro, uma falha de conduta, um privilégio, um termo infeliz, que a máquina de textão poderá capturar e voltar contra você. E então, assim como eu, você talvez se canse, se cale, e se recolha à sua humanidade.
Estratégias erradas
Estando mais afastada da bolha ativista, sinto que a aflição surge da preguiça de ter que encará-la novamente: se é que a militância leria um texto como este, consigo antever, por exemplo, reprimendas a quem “ousa” criticar o feminismo em um momento tão delicado para a esquerda, onde “tudo o que já conquistamos” está ameaçado.
Por um lado, reconheço que nem todas as iniciativas são autoritárias como as que encontrei no Facebook – eu mesma tive contatos muito bonitos e produtivos. Por outro, sigo desolada com a incapacidade de muitos ativistas de reconhecer que a arduidade do avanço está ligada à própria burrice das estratégias (isto é, quando elas de fato existem). Como podemos neste cenário atravessar tanta futilidade, tanta vigilância, tanta defesa disfarçada de investida, e impulsionar uma frente transformadora? Minha intenção é destacar que estamos tornando a possibilidade de diálogo e síntese cada vez mais remota. Não sei como resolver esse problema, mas, claramente, isso não se dará pela vergonha e pelo ressentimento.
Chama minha atenção, ainda, uma recusa à alteridade por grupos que, como o feminismo, supostamente lutam para trazê-la à frente. Acostumadas a operar este conceito somente a nível identitário, rejeitamos prontamente quem não é do nosso clube, ou não performa o pertencimento que conhecemos. Parece que, em toda parte, nossa maior busca é dar com nós mesmas – e falando por mim, pergunto-me se, comprometida com a autoafirmação e até com um tipo de branding pessoal, já tive noção do que é uma práxis política feminista.
Talvez seja preciso localizar o político no pessoal – mas ainda cogitamos a existência de um pessoal realmente pessoal? – e questionar o quanto do feminismo de cada uma de nós realmente é altruísta (“sou feminista pelo bem de todas as mulheres”), principalmente quando se encontra exclusivamente na seara online. Acredito que seja justo questionar a lógica heroica – tão masculinista – segundo a qual a única revolução é a Grande Revolução. Às vezes, a mudança mais objetiva se opera no íntimo – e naturalmente se desdobra e repercute fora de nós também. Afinal, muitas ativistas sequer imaginam o impacto positivo que tiveram na minha formação. Talvez seja válido defender, inclusive para o próprio movimento, a utilidade preliminar de um feminismo menor, ensimesmado, intrafeminismo (“sou feminista para salvar a minha vida”). E entender o que há de particular, inapreensível pelo coletivo, sendo deslocado de seu território – seja para incendiar e sufocar movimento, seja para oxigená-lo.

4 Comentários
4 respostas para “Como abandonei o ativismo na internet”
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Ótimo texto! Eu venho pensando nessas questões há algum tempo, pois o gasto de tempo e energia nas redes sociais com a militância é um desgate físico e emocional. Já fiquei quase sem dormir por isso. É muito importante se perguntar quais motivações me levam a militar por algo e se a rede social, de fato, é um bom lugar para defender uma “causa”.
pertinente e lúcida. parabéns e obrigada!
Stefanie, obrigada pela contribuição ao expôr seus sentimentos. Infelizmente algumas pessoas na militância (feminista e outras) estão passando de oprimidos a opressores, quase como uma vingança, sem conseguir separar o indivíduo da identidade. O indivíduo está ferido e precisa de cuidados pessoais que vão além da militância.