Como é que se esquece alguém que se ama?

Uma investigação que vai da ciência à poesia mostra que não se esquece: ultrapassa-se, dá-se tempo ao tempo e espera-se que passe. Como em tudo nesta vida, ter paciência é fundamental

25.02.2021  |  Por: Pureza Fleming

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Como é que se esquece alguém que se ama?

foto de Karim Manjra/Unsplash sobre grafite Banksy

O Deus do Amor, escreveu Platão em O Simpósio, “vive num estado de necessidade”. E em lugar algum essa necessidade é tão palpável e aguçada quanto a do amante que anseia pelo seu ex. Em caso de dúvida, a experiência da vida confirmaria a assunção daquele filósofo. Afinal, quem nunca sofreu por amor? Quem nunca penou com a falta do seu amor que, repentinamente e sem dó nem piedade, o deixou de o ser para ganhar o prefixo de ex-amor?

The struggle is real, e a própria ciência é capaz de o explicar: Helen Fisher, antropóloga e bióloga americana, levou a cabo uma experiência em que conectou amantes abandonados a um scanner de ressonância magnética e os fez ver as fotos dos seus ex. “Encontrámos atividade em muitas partes diferentes do cérebro”, disse Fisher, que leciona na Rutgers University. “Um deles é uma pequena seção do cérebro denominada de área tegmental ventral, que é a parte que produz a dopamina, um estimulante natural que está ligado ao amor romântico. Quando se é rejeitado por alguém, ama-se ainda mais essa pessoa”.

E a dor, essa, é quase física. É agonizante. Insuportável, diríamos. Então, como é que se esquece alguém que se ama? Num texto que descortina em torno desta questão, o escritor português Miguel Esteves Cardoso concede o seu ponto de vista: “Como é que se esquece alguém que se ama? Como é que se esquece alguém que nos faz falta e que nos custa mais lembrar que viver? Quando alguém se vai embora de repente, como é que se faz para ficar? Quando alguém morre, quando alguém se separa — como é que se faz quando a pessoa de quem se precisa já lá não está? As pessoas têm de morrer; os amores de acabar. As pessoas têm de partir, os sítios têm de ficar longe uns dos outros, os tempos têm de mudar sim, mas como se faz? Como se esquece? Devagar. É preciso esquecer devagar. Se uma pessoa tenta esquecer-se de repente, a outra pode ficar-lhe para sempre”.

O texto continua, mas a resposta encontramo-la aqui, neste parágrafo que atrás transcrevo: é, de facto, essencial que se esqueça o outro devagar. “É verdade que o esquecimento de alguém que se amou é um processo, e não um momento que ocorre ‘de repente’. Tentar suprimir sentimentos não faz com que eles desapareçam nem diminuam, podendo até gerar o efeito inverso a médio prazo. É preciso desenvolver o músculo da paciência e tolerância pelo tempo que demora o processo de esquecimento”, confirma a terapeuta de casal Rita Fonseca de Castro. Quando termina uma relação, perde-se uma pessoa que permanece viva, mas que “morreu” na função que desempenhava na nossa vida. Assim, e como em qualquer perda, o processo de luto é fundamental para se viver de forma funcional e adaptativa o término de um ciclo, para dar por encerrada uma fase da vida. Aliás, esta percepção de que a vida se compõe de ciclos e de mudanças é fundamental para enfrentar o final de uma relação.

O luto. Um mal necessário que é tantas vezes colocado de lado, dando o seu lugar às mais-do-que-muitas distrações que deixam uma nuvem cinzenta a pairar sobre a imagem do ser amado, aparentando um desaparecimento que é tudo menos real. O luto não só faz bem como se recomenda: “A conceptualização do luto relacional como sendo composto pelos cinco estágios de vivência do luto – negação, raiva, negociação, tristeza, aceitação – ajuda-nos a aprender a viver com a perda que sofremos e a identificar o que estamos a sentir – isto é, em que estágio nos encontramos – não esquecendo que o processo de luto não é linear e a sua vivência é idiossincrática. Nem todas as pessoas passam por todas as fases do luto – enquanto que algumas aceitam rapidamente que a relação terminou, outras há que ficam reféns da tristeza. O que é fundamental entender é que, embora o luto seja uma vivência dolorosa, não é passível de supressão ou evitamento, faz parte da vivência da perda e da preparação para uma nova fase da vida”, avança aquela terapeuta de casal.

A pessoa que ama alguém que a deixou de a amar encontra-se afundada num avassalador mar de sentimentos que têm de ir para algum lado. A questão é para onde?

E mantém a sua explicação: “As investigações têm demonstrado que o tempo de vivência de um luto relacional é de cerca de um ano. A fase de luto é fundamental para reflectir sobre a relação que terminou e sobre o nosso papel e contributo. Nesse tempo reorganizamos o passado e o presente. Caso percebamos que repetimos comportamentos que conduziram a resultados indesejáveis ou padrões disfuncionais, podemos começar a operar mudança. Sem dar tempo para que este olhar crítico se instale, a probabilidade de se repetir padrões negativos em relações futuras é grande. É, assim, no processo de luto, que se revisita a relação e se consegue, com o avançar do processo, ter uma visão cada vez mais nítida sobre o que nela se viveu. Estados de raiva permitem perceber que a relação não era tão perfeita como podemos estar a idealizar com a dor da perda, numa atitude de negação. Depois de vivências emocionais mais turbulentas, virá a aceitação, acompanhada da sensação de libertação do sofrimento, e estar-se-á preparado para viver novos amores.”

Posto isto, apesar de, por vezes, a vontade maior seja a de beber — e de fazer tudo o que está ao alcance do ser amado — para esquecer, na prática tal escolha promete não trazer nada de bom. Ainda assim, é importante destacar que cada pessoa tem a sua forma de viver e de sentir o final de uma relação, pelo que se deve, em primeira instância, respeitar as necessidades de cada um. “Para que não haja um foco excessivo na perda e no sofrimento, a distracção é importante, sobretudo se for passado tempo na companhia das pessoas mais próximas, que desempenham um papel de suporte emocional. Contudo, esta distracção deve ser equilibrada com tempo a sós e investimento no autocuidado, o que é indispensável para a vivência do luto relacional. Começar outras relações pode ser precipitado, se o objectivo for o de ‘tapar’ um espaço que era ocupado pela relação que se tinha, e pode tornar-se o motor para a vivência de novas frustrações e perdas, que podem agudizar a vivência da perda primordial”, explana aquela terapeuta de casal.

Então, como auxiliar alguém que perdeu a pessoa que amava? “Em primeira instância, caberá ao psicólogo normalizar todas as vivências emocionais, mesmo as mais desagradáveis, sublinhando que todas elas serão passageiras, ainda que seja difícil percebê-lo no momento da dor. Deverá ainda ser fomentado uma mudança de foco do nós (e/ou do outro) para o eu. Depois de ter sido dedicado tempo a uma relação e ter havido um privilégio do nós, é importante que seja investido tempo no auto-cuidado, na capacidade de apreciar a própria companhia. Pode-se reflectir sobre o que se gosta de fazer ou faz bem, e de que se possa, até, ter abdicado no curso da relação, retomando essas actividades, o que vai trazer uma sensação de bem-estar, para além de ajudar a auto-estima e/ou auto-confiança que, muitas vezes, ficam minadas após uma separação. Embora possa parecer uma tarefa difícil, sobretudo quando existem sentimentos de rejeição e a separação não era desejada, é crucial entender que o valor próprio não se define pela presença de outrem na sua vida e que, não é porque alguém deixou de querer ter uma relação consigo, que a pessoa perdeu as suas qualidades. Nestes casos mais penosos, é crucial procurar sentido para a vida para além da relação que terminou”, clarifica Rita Fonseca de Castro.

E se na teoria é tudo muito bonito, na prática a coisa complica-se. A bem ver, a pessoa que ama alguém que a deixou de a amar encontra-se afundada num avassalador mar de sentimentos que têm de ir para algum lado. A questão é para onde? Onde é que se vai enfiar aquele amor todo? É que para quem não desejou separar-se, o amor pode dar lugar a alguns sentimentos de perda (“um vazio”), abandono, rejeição, impotência, culpa (pelo término da relação – O que é que eu podia ter feito de diferente? Onde é que eu falhei?), frustração ou solidão.

Sentimentos de mágoa, raiva e rancor em relação ao outro também podem surgir. Em casos mais extremos, podem surgir mesmo o desespero e a desesperança, como se nada mais valesse a pena e a vida não fizesse sentido sem a presença da outra pessoa. “Idealmente”, arremata Rita Fonseca de Castro, “e depois de concluído o processo de luto, o amor, assim como todas as vivências relacionais, passam a ser recordadas de uma forma mais leve, com sabor a nostalgia, e vão juntar-se a tantas outras recordações que habitam a nossa memória e nos deixam mais ricos”. Portanto, respondendo à questão de como é que se esquece alguém que se ama? Não se esquece. Ou, como diria Miguel Esteves Cardoso: “Para esquecer é preciso deixar correr o coração, de lembrança em lembrança, na esperança de ele se cansar”. E não é que, no final, ele sempre se cansa?

 

Pureza Fleming nasceu em Lisboa, Portugal, há 39 anos. Uma obcecada por palavras, como boa geminiana que é, tem dedicado a sua vida às mesmas. Trabalhou como copywriter em agências de publicidade tais como BBDO Portugal e McCann Erickson. É, no entanto, pelo mundo das revistas que, ao longo da última década, tem espalhado as suas palavras. Já foi editora de moda e hoje escreve essencialmente sobre questões de comportamento e de sociedade — um world que a fascina. Atualmente divide a sua vida entre Búzios, Rio de Janeiro, e Lisboa

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