Como viajar durante uma pandemia

Não é pegando avião, ônibus, carro ou qualquer outro meio de transporte. Quebre a ideia romantizada que a sociedade moderna tem das viagens e dê a volta ao mundo sem sair de casa

13.04.2020  |  Por: Maria Clara Drummond

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Como viajar durante uma pandemia

É quase um paradoxo que em tempos tão globalizados, com as grandes cidades cada vez mais pasteurizadas, a viagem ainda tenha essa aura singular, única. “A homogeneização do mundo é o grande mal-estar de uma viagem – viajar sem sair de onde já se estava”, escreve Nuno Ramos no ensaio O Turista Infeliz. Por isso, há um esforço tão grande para tornar o relato de viagem especial. É preciso garantir ao interlocutor algo indisponível aos demais, os reles turistas.

Anos atrás, em um manifesto anti-viagem em sua coluna na Folha de S. Paulo, Michel Laub perguntou: “Existe autenticidade possível em 30 dias de aventuras pré-programadas? Para viver a fantasia de pairar acima da manada, basta apenas não usar boné e meias até o joelho, trocando as fotos da Disneylândia pela praia sem eletricidade, o show de ingressos esgotados, o restaurantezinho?” O texto é de 2012. Hoje, há guias especializados nesse tipo de segredo somente conhecido pelos verdadeiros londrinhos, parisienses, nova-iorquinos… e aqueles que compraram o guia!

O mesmo desejo de exclusividade leva tanto ao consumo da bolsa de dois mil euros quanto ao restaurante discreto, sem letreiro na porta, numa viela escondida, sem nenhum turista, só frequentado pelos locais, que vão comer ali há gerações. Nos anos 80, quando a competição por mais carimbos no passaporte ainda funcionava na base do boca a boca, Luis Fernando Verissimo escreveu: “Há pessoas que ostentam lugarzinhos como outras ostentam riqueza. O lugarzinho tem que ser, antes de mais nada, desconhecido, ou só conhecido por uma minoria privilegiada, do próprio lugar. Os lugarzinhos só são descobertos pouco antes de deixarem de ser, pois a própria descoberta determina a perda das credenciais de lugarzinho. Não demorará muito antes que o lugarzinho passe a ser frequentado só por pessoas atrás de lugarzinhos.”

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Nas últimas décadas, na busca eterna por uma experiência única, inacessível aos demais, o lugarzinho foi substituído por algo mais intangível, espiritual, íntimo. Todo mundo quer ser Elizabeth Gilbert em Comer, Rezar e Amar: sair por aí, pelos quatro cantos do planeta, exotizando seus habitantes, alcançando autoconhecimento e voltando cheia de história para contar. Em tempos de Instagram isso é mais forte que nunca. Faz parte da tendência do “consumo de experiências”, algo que se propõe acima da mesquinharia que é adquirir um sapato, uma pulseira, um celular. A viagem iluminadora é um dos grandes fetiches consumistas do nosso tempo – perdendo, talvez, para cafés humanitários e coisa do tipo, que foram tão bem dissecados por Slavoj Zizek. Nada como um bom spa dentro de um hotel-butique no sudeste asiático para reavaliar o materialismo da pós-modernidade.

Faz sentido que a viagem seja a resposta mais rápida para fugir da automatização da vida. A paisagem muda, e com isso surgem sensações inéditas de maravilhamento, inspiração, novidade. Mas, se comprar uma roupa nova traz apenas excitação passageira, por que seria diferente com um cenário, uma comida, um prédio? A viagem no capitalismo é apenas mais um shot de dopamina tal qual qualquer outro tipo de consumo – em tempos de pandemia lá fora fica mais fácil soltar essas palavras. É mais eficaz buscar a satisfação e autoconhecimento olhando não para fora, mas para dentro. Blaise Pascal, filósofo francês do século XVII, achava que todos os problemas da humanidade tinham origem na dificuldade dos seres humanos em simplesmente serem felizes sozinhos em seus quartos.

Acabei de completar uma viagem de 42 dias pelo meu quarto

Esse ideal da viagem como fonte de aventura e renovação existe desde a antiguidade, bem antes da invenção do capitalismo. O exemplo mais clássico é Ulisses, da Odisseia de Homero, e sua jornada do herói ao longo de um rolê de dez anos fora de Ítaca. Sêneca, um dos principais intelectuais do Império Romano, escreveu um texto criticando a viagem como cura para o descontentamento: “Você está surpreso que depois de tantas viagens você não foi capaz de afastar a escuridão e o peso de sua mente? Você precisa de uma mudança de alma em vez de uma mudança de clima. A pessoa que você é importa mais do que o lugar para onde você vai. Se você enxergasse esse fato com clareza, não ficaria surpreso em não se beneficiar dos cenários novos que substituíram os cenários antigos. Você não está viajando; você está à deriva e sendo conduzido, apenas trocando um lugar por outro, embora o que você procura – viver bem – seja encontrado em todos os lugares.”

No século 18, o escritor francês Xavier de Maistre foi na mesma linha com seu clássico Viagem ao Redor do Meu Quarto, em que prova que é possível viajar o mundo todo sem sair da própria cama (eis um livro apropriado para o momento): “Acabei de completar uma viagem de 42 dias pelo meu quarto. As fascinantes observações que fiz e os infinitos prazeres que experimentei ao longo do caminho me fizeram querer compartilhar minhas viagens com o público, e a certeza de ter algo útil a oferecer me convenceu a fazê-lo. Palavras não podem descrever a satisfação que sinto em meu coração quando penso no número infinito de almas infelizes pelas quais estou fornecendo um antídoto seguro para o tédio e um paliativo para seus males. O prazer de viajar pelo quarto de alguém está além do alcance do ciúme inquieto do homem: isso não depende das circunstâncias materiais.” Embora pareça um mensageiro vindo do passado para nos ensinar a maneira ideal de viver a quarentena durante essa pandemia de coronavírus, um aviso: o livro contém várias ironias, relatos de tédio, frustração sexual, e um pouco de loucura. Mas rendeu uma sequência igualmente interessante: Expedição Noturna Pelo Meu Quarto.

Na era da internet, talvez seja bom mesmo ficar com as palavras da poeta Ana Guadalupe, em seu ótimo livro Não conheço ninguém que não seja artista (Editora Confeitaria, 2015). No poema Quem Lê Viaja, ela se pergunta: “Viajar pra quê/ se tem na internet/ se já tiraram foto pra você/ se é impossível guardar na memória/ por mais de 3 anos/ se o lugar não volta nas malas/ se haverá gastos e cansaço/ se me causará despeito/ se 80% das pessoas/ descreverão todos os países/ em poucas palavras/ e você poderá usá-las/ sem esforço/ no conforto de casa.” Mais atual, impossível.

 

Maria Clara Drummond é jornalista e escritora, autora dos romances A Realidade Devia Ser Proibida (editora Companhia das Letas, 2016) e A Festa É Minha e Eu Choro Se Eu Quiser (editora Guarda Chuva, 2013)

 

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