Comunismo para crianças?

A editora do livro da ensaísta Bini Adamczak no Brasil pede licença para escrever sobre a reação a 'Comunismo para Crianças' – que, ela explica, não é para crianças!

26.07.2018  |  Por: Rita Palmeira

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Comunismo para crianças?

Bini Adamczak

No Brasil de 2018, o título soou escandaloso, mas ​é simples a proposta que Comunismo para Crianças faz: explicar, em linguagem acessível, os meandros da organização econômica da sociedade. O que é capitalismo, o que é mercado, o que é crise e, sim, o que é comunismo. O “para crianças” é, na verdade, um toque irônico, presente, por sinal, no livro todo. Ele significa ​algo como “desenhando o comunismo”. Ou seja, é explicado de maneira tão didática que até uma criança poderia entender. E só.

Escrito por uma ensaísta e artista visual chamada Bini Adamczak e publicado originalmente na Alemanha, em 2004, Comunismo para Crianças acaba de chegar às livrarias brasileiras. E, antes mesmo de ter aterrissado nas gôndolas das principais redes, já despertou a ira de grupos conservadores, que passaram a acusar a editora (Três Estrelas) de tentar doutrinar os pequeninos. A melhor definição de “não li e não gostei”.

Antes que seja tarde, e eu avance na discussão sobre o livro e a reação que sua publicação gerou, preciso dizer que trabalhei em sua edição. Tudo o que vou falar aqui é, portanto, claramente enviesado por essa minha função (enviesado é, sublinhe-se, diferente de doutrinado). Eu li, reli, voltei a reler e dei mais uma lidinha. Ou seja, conheço o livro de trás para a frente, e ele é ótimo: divertido, corajoso, esclarecedor. É um “li (mesmo!) e adorei”. É um livro pequeno e que se divide em duas partes – uma que de fato poderia ser lida por um, vá lá, adolescente, e outra que, não tem jeito, exige a leitura de um adulto.

 

 

Livro aberto

A primeira parte, em que a autora explica conceitos como capitalismo, mercado e crise, é acompanhada de ilustrações de pequenas revolucionárias. Bini narra, em linguagem que simula a das histórias infantis, situações para explicar o funcionamento do capitalismo. Mostra que esse sistema econômico promove o sofrimento das pessoas e então passa a contar as tentativas de implantação do comunismo e a frustração de suas pequenas revolucionárias ao se darem conta de que tais esforços não resolveram os problemas, ou melhor, criaram outros e, ao fim e ao cabo, não foram suficientes para garantir a felicidade geral.

Além de uma ironia fina, capaz de provocar no leitor uma risada contida a cada dois parágrafos, há outro expediente bem espirituoso nessa primeira parte do livro: tudo é narrado do ponto de vista feminino. É uma espécie de história do capital com protagonistas mulheres – a história narrada de outro jeito, afinal. Então, se no feudalismo tínhamos rainhas e camponesas, no capitalismo temos as donas dfábricas e operárias.

Identificadas, com muito bom humor e leveza, as empreitadas falidas de implantação do comunismo, chega-se ao dilema que Bini explora na segunda parte do livro​: diante de tamanho insucesso, será que temos de abrir mão do desejo de um mundo melhor, aquele mundo que queriam as pequenas revolucionárias? Bini então assume a discussão a partir dos eventos deste milênio, do capital globalizado, e aposta em movimentos que vêm ocorrendo nos últimos dez anos: da Primavera Árabe ao Occupy Wall Street e ao Nuit Debout. A autora advoga por um comunismo, é certo, mas um comunismo em sua dimensão utópica – uma ideia de que ninguém tenha muito e ninguém tenha pouco e, assim, todos possam ser felizes. Sim, é isso mesmo: a formulação é tão simples que até uma criança poderia entender.

A problematização

Bom, mas então por que a gritaria em torno do livro? Por que o parti pris de que se trata de um panfleto? Possivelmente pela escolha do título. E aqui é preciso dar uma explicação: o título original, em alemão, é apenas Comunismo. O acréscimo de “para crianças” foi um empréstimo que fizemos da edição americana (Communism for Kids).

A MIT Press lançou o livro no ano passado e ​optou por, na melhor tradição americana, orientar o leitor. Nenhum livreiro colocou os exemplares na seção infanto-juvenil, mas a imprensa dos EUA foi impiedosa. O falatório, na verdade, começou lá. Bastava, porém, virar o livro e espiar a quarta capa para descobrir que não se tratava de um livro para crianças. Nem por isso a reação foi menor, e até o tradutor teve de explicar o óbvio, em artigo publicado no New York Times.

Sim, esperávamos que, em tempos de polarização ideológica no Brasil, a reação aqui pudesse ser semelhante. Só não imaginávamos que isso pudesse acontecer antes de o livro sair da gráfica. Uma notinha no jornal serviu como rastilho de pólvora para que a editora recebesse uma enxurrada de e-mails perguntando se o próximo volume ​da editora ​ seria o Mein Kampf para crianças…

Se o incauto acusador se desse ao trabalho de abrir o livro, talvez se surpreendesse: “Será que pode e deve ser chamado de comunista quem se recusa, tomado de vergonha, a assumir a responsabilidade pelo legado do stalinismo e suas vítimas?” Se o desorientado detrator permanecesse com o livro aberto, seria capaz de entender o que propõe Bini: “O desejo tem de ser inventado, tem de ser desejado. Desejar o desejo. Desejo comunista: que a miséria finalmente chegue ao fim.” Mas, bom, o caluniador de plantão nas redes sociais não deve saber que desejar dá trabalho, que desejar um mundo melhor dá mais trabalho ainda e, sim, é um gesto revolucionário.

De qualquer forma, fica o convite para que, com a curiosidade que as crianças têm e muitos adultos perdem, ele ao menos folheie o livro antes de vociferar por aí.

Rita Palmeira escreve sobre livros de ficção e edita livros de não-ficção. Seu doutorado é sobre livros escritos por presidiários

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