Criminalizar o aborto é punir, duplamente, as mulheres negras

O racismo e o sexismo, articulados, as atingem com peso diferenciado em relação a outros segmentos sociais

13.11.2017  |  Por: Tricia Calmon

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Criminalizar o aborto é punir, duplamente, as mulheres negras

Foto: Mô Bertuzzi

 “Escrevo a miséria e a vida infausta dos favelados. Eu era revoltada, não acreditava em ninguém. Odiava os políticos e os patrões, porque o meu sonho era escrever e pobre não pode ter ideal nobre. Eu sabia que ia angariar inimigos porque ninguém está habituado a esse tipo de literatura, seja o que Deus quiser. Eu escrevi a realidade”

Carolina Maria de Jesus


Parir ou abortar é quase sempre uma experiência traumática para as mulheres negras no sistema público de saúde brasileiro. Isso porque o racismo e o sexismo, articulados, as atingem com peso diferenciado em relação a outros segmentos sociais.

Trata-se de uma realidade que vem sendo disputada a duras penas, e acreditávamos que com certo êxito, na última década, tendo em vista o avanço de políticas públicas para gênero e raça, com a criação inclusive de órgãos no Governo Federal, em estados e municípios. Coexistiam obviamente as lógicas racistas e conservadoras, mas sentíamos uma força na organização, sobretudo das mulheres negras que seguiram se juntando e apontando o horizonte político. Se movimentar nessa realidade complexa enfrentando o desafio da sobrevivência a cada dia não tem sido tarefa fácil.

Vivemos em um país que assistiu com naturalidade, em 2007, ao então governador do estado do Rio de Janeiro, Sérgio Cabral (PMDB), declarar sem o menor constrangimento que as mães que moram nas favelas são “fábrica de produzir marginal”, travestindo-se de progressista, por apoiar o aborto, quando na realidade estava sendo eugenista, diante da escancarada motivação do seu posicionamento.

Ao mesmo tempo, lidamos com uma crescente marcha religiosa cristã que atenta contra a Constituição Cidadã, extrapolando o seu papel, que deveria estar circunscrito no âmbito da vida privada e das escolhas individuais, para infiltrar-se e carcomer a laicidade do Estado, que deve cumprir o papel de garantir direitos, preservar vidas, e inclusive o direito ao exercício das mais diversas expressões religiosas.

Foto: Mô Bertuzzi

 

No entremeio dessas perspectivas estão as mulheres negras, que seguem encurraladas entre a ética religiosa cristã castradora persistente no campo da política, e o racismo deslavado, que ao final das contas se intercruzam produzindo mais violações e vulnerabilidade.

A largamente conhecida “bancada da bíblia”, formada por deputados que dizem representar evangélicos e católicos, imprime ritmo à sua pauta que inclui, por exemplo, a supressão de conteúdos que discutam gênero e racismo nas escolas, alegando uma suposta “periculosidade” no que chamam de “ideologia de gênero”; a institucionalização da “cura gay”; a demonização de tudo aquilo que é de origem africana. E no que tange a PEC 181/2015, tenta aprovar junto ao conteúdo de extensão da licença-maternidade, a criminalização do aborto. Tudo isso com base em crenças religiosas absolutamente desagregadoras, antidemocráticas, misóginas e racistas, passíveis de legítima discussão em outros âmbitos da sociedade que não os das leis e da Constituição Federal.

Foto: Zô Guimarães

 

O aborto tem sido tema de acalorados debates no Brasil, quando na realidade precisamos seriamente discutir a preservação da vida e do cuidado das mulheres. Mulheres cometem abortos em todas as classes sociais e continuarão a cometer. Segundo a Pesquisa Nacional de Aborto, com dados de 2010, mais de uma em cada cinco mulheres brasileiras cometeram aborto ao completar 40 anos. A pesquisa conclui que “um fenômeno tão comum e com consequências de saúde tão importantes coloca o aborto em posição de prioridade na agenda de saúde pública nacional”. Frise-se que a pesquisa aponta para o cuidado em saúde, não se tratando, portanto, de abordagem penal, tal qual refere-se a proposta de emenda constitucional pela criminalização do aborto.

A diferença é que as mulheres brancas de classe média e alta realizam o procedimento geralmente em condições de segurança e sob orientação de saúde, enquanto que o rigor da criminalização atingirá punitivamente aquelas que cometem aborto sob condições precárias, sem nenhum acompanhamento de saúde, e que morrem devido a isso. Ao Estado cabe disponibilizar informações, serviços qualificados de saúde e promover o cuidado dos sujeitos de direitos. É sobre isso que estamos falando.

Se concorda em proceder com o aborto ou não, sob que condições ou não, se há implicação espiritual ou não, essa deve ser uma compressão construída com e pela mulher, que enquanto sujeito de direitos precisa estar amparada por informações e possibilidades de cuidado, até para estar segura sobre uma decisão de prosseguir (ou não) com uma gestação.

O movimento de mulheres negras e outros segmentos de movimento social têm focado no desafio de estabelecer um debate amplo e público que contribuam para resguardar o papel do Estado em garantir direitos, inclusive a liberdade de expressão religiosa e a preservação da vida. É exatamente nesse sentido que expressamos absoluta discordância com a criminalização do aborto, sendo que em um Estado democrático que não viole direitos humanos de mulheres e homens negras/os, onde o acesso a saúde, educação e informação sejam garantidos, dificilmente necessitará que determinadas disputas de concepção de mundo se deem no campo penal, mas na perspectiva do cuidado e na construção e reconhecimento da humanidade.

Sob essa ótica, afirmamos que uma medida que aprofunda a punição já experimentada pelas mulheres negras, sendo este o segmento populacional mais vulnerabilizado e empobrecido, conforme os índices sociorraciais e econômicos brasileiros, figura como uma medida violentamente racista e sexista que segue no contra-fluxo da construção de uma sociedade mais justa e igualitária para todas e todos.

 

1Para saber mais da 1ª Marcha Nacional das Mulheres Negras – contra o racismo, a violência e pelo bem viver, ocorrida em 2015, acesse o Caderno Sisterhood, 2ª edição
<http://www2.ufrb.edu.br/cadernosisterhood/images/Cadernos_Sisterhood_volume_2_final_2017.pdf>
2 “Cabral apóia aborto e diz que favela é fábrica de marginal” <http://www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidian/ff2510200701.htm>
3 Fonte: Pesquisa Nacional de Aborto, microdados da amostra, Brasil 2010.
< https://www.apublica.org/wp-content/uploads/2013/09/PNA.pdf>. Acesso em 12/11/2017.

 

Tricia Viviane Lima Calmon é especialista em Políticas Públicas de Gênero e Raça (Núcleo de Estudos Interdisciplinares da Mulher / Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da UFBA – 2015), graduada em Ciências Sociais pela Universidade Federal da Bahia (2008). Atualmente, ocupa o cargo de Coordenadora Político-Pedagógica do Programa Corra pro Abraço (Secretaria de Justiça e Direitos Humanos e Desenvolvimento Social do Estado da Bahia), e é membro da Assembleia Geral do Fundo Baobá para a Equidade Racial e membro-titular do Comitê Interinstitucional de Monitoramento e Avaliação das Leis 10.639/2003 e 11.645/2008, presidido pelo Ministério Público do Estado da Bahia. Atuou como consultora da Fundação Kellogg no programa de Equidade Racial no Nordeste (2008 a 2011), e como Coordenadora Executiva de Igualdade Racial da Secretaria de Promoção da Igualdade Racial do Estado da Bahia (2012 a 2015).

 

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