Desabafo de um corpo negro

O pior assédio é aquele que acua. E para isso bastam palavras – que o digam expressões como 'não sou tuas negas' e 'mulata tipo exportação' – ou até mesmo um olhar

16.07.2018  |  Por: Monica Honorato

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Desabafo de um corpo negro

Tanja Heffner

A verdade é que eu gostaria que você, assediador, sentisse na pele o que sinto todos os dias.

A verdade é que gostaria sim, e nem me culpo por isso, que você sofresse pelo menos um dia a privação da liberdade de ir e vir, de se vestir da forma que deseja.

A verdade é que eu gostaria que percebesse na pele que o assédio vem muito antes do mexer na rua. Ele começa com um olhar malicioso, que fere.

A verdade é que eu gostaria que você, assediador, por um dia sentisse a invasão que esses olhares representam.

Se por um dia você estivesse na minha pele, na pele de uma mulher, talvez algo mudasse. Quem sabe assim você entenderia o quanto seu assédio machuca, fere. Longe de se configurar como um elogio, ele me causa dor, pavor e medo constante. Por causa do seu assédio muitas mulheres já quiseram esconder seus corpos ou tiveram raiva dele. O seu “psiu” na rua não eleva minha autoestima ou a de qualquer outra mulher, ele destrói a nossa segurança. Eu não me visto para você e muito menos existo para satisfazer suas fantasias.

O corpo das mulheres negras ainda é visto como sexual antes de ser visto como humano, e muitas vezes como não digno de ser amado e respeitado; repare em qual contexto a expressão “não sou tuas negas” é citada numa conversa.

Ontem mesmo, num final de tarde no interior de São Paulo, onde minha família mora, resolvi fazer uma caminhada. A vida no interior é sim mais tranquila e gosto de aproveitar a quietude da rua para curtir momentos de solidão. Mas no meio do caminho tinha homem e ele gritou algumas palavras obscenas na minha direção enquanto passava com o carro devagar do meu lado. Ando sempre de fone de ouvido e ostento uma cara de brava, aprendi com a vida que isso protege (um pouco) minha saúde mental e meu corpo físico. Nesse dia, a música estava baixinha, eu buscava calma. Então, fingi que não vi o homem. Mas ele não desistiu, deu a volta no quarteirão e passou por mim mais duas vezes falando coisas. A rua estava vazia, eu tive medo e voltei pra casa como um animal acuado. E lá eu chorei. Chorei muito. Mais uma vez eu era invadida.

Muita gente acha que o pior assédio é o que toca, mas eu não acredito que isso seja verdade. O pior assédio é aquele que acua. E para isso bastam palavras ou até mesmo um olhar.

Pausa necessária para reflexão: vamos lembrar que a palavra-chave aqui é consentimento. Que segundo o dicionário é: “Manifestação favorável a que (alguém) faça (algo); permissão, licença, concordância.” Ou seja, se eu e uma pessoa estamos nos relacionando (seja até por uma noite) e ambos temos vontade, desejo, tesão ou amor um pelo outro, existe consenso. Neste caso, se ele falar “gostosa” isso soa completamente diferente do que uma pessoa que nunca vi na vida e passa por mim gritando tal palavra. O problema não é o que se diz, mas quando, para quem e como se diz. E quando um homem acha que toda mulher, sobretudo a mulher negra, deseja só ouvir essas coisas, isso se chama violência.

É assustador ler relatos de mulheres que, como eu, reagem a assédios

Sai o elogio e entra o medo. E daí cria-se a privação (tão velada quando explícita) da liberdade de ir e vir e de se vestir como quer. E isso não é um problema individual, é coletivo. Ainda não consigo entender o questionamento que fazem às mulheres assediadas: “Que horas eram?”, “O que você estava vestindo?”, ou “Você provocou?”.

Outro dia eu assisti a um TED da Nátaly Neri (Afro e Afins) chamado “A mulata que nunca chegou”. Achei bem curioso esse título. A Nátaly esperou ansiosamente pela “mulata” em seu corpo, mas ele não tomou os contornos esperados por quem enxergava essa “mulata” nela. A minha experiência é outra. Quando percebi lá estava ele, o tal corpo de “mulata” que socialmente tem uma carga e ela é toda regada de sexo; mais uma vez cito mais uma péssima expressão relacionada a mulheres negras, “mulata de exportação“. Note que estou usando esta palavra com a “licença poética” de Nátaly Nery para esse TED, que tem todo um contexto envolvido. Mas vamos combinar que, fora isso, usar as palavras “mulata” e “mulato” para se referir a pessoas negras não é nada legal.

Isso nos remete a um texto muito interessante de Silvia Nascimento sobre uma pesquisa que mostra que crianças negras são vistas como menos inocentes. Que dolorida esta informação. Mas isso está diretamente ligado à “mulata” que, imaginam, um dia virá. São estigmas históricos que se estendem por toda a nossa vida.

Desde muito cedo, entendi que as formas do meu corpo (bunda grande, cintura fina e seios pequenos) são o estereótipo da mulher negra erotizada, hiperssexualizada. E estar enquadrada neste estereótipo já me causou tanta exaustão que pensei em me esconder. Me esconder na forma de vestir, de me relacionar, de me expressar. Deixar de ser vaidosa, deixar de frequentar espaços que frequento. Deixar de ser eu. (E é muito óbvio como isso é um fator contribuinte para a solidão da mulher negra.)

Mas, que loucura! Por um instante pensei em me esconder – não usar uma calça jeans, jogar fora saias, vestidos, parar de usar maquiagem, deixar de lado a minha personalidade – por causa de alguns homens que são assediadores? Veja bem, eu não tenho raiva de homem. Me relaciono muito bem com eles inclusive. Negros, brancos, mestiços, amarelos… Mas eu tenho medo daqueles com quem não me relaciono. Medo de ser machucada, invadida, mais uma vez estereotipada como objeto de desejo. E, claro, tenho medo de reagir. É assustador ler relatos de mulheres que, como eu, reagem a assédios.

Eu não quero e não vou me conformar com essa situação. Não sou um pedaço de carne. Não estou à disposição.

Quero continuar sendo livre. Livre para me expressar e para amar. E é por isso que seguirei escrevendo, denunciando, tomando partido e marchando nas ruas. Por mim, por todas as mulheres e principalmente por crianças negras.

 

Mônica Honorato é também Monicat, produtora e jornalista que trabalha com publicidade. É feminista negra e adepta de um estilo de vida saudável. Acredita na sintonia da comida limpa e na harmonização dos bons pensamentos para o equilíbrio do corpo físico

 

1 Comentários

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Uma resposta para “Desabafo de um corpo negro”

  1. Mariana Tomaz disse:

    Nossa, que texto lindo e dolorido.

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