Desabafo: se antes eu achava que tinha que diminuir pra caber no mundo, agora o mundo que se vire
Em um depoimento-manifesto, a escritora Clara Averbuck narra a sua luta contra a balança e conta porque está determinada a ocupar muito mais do que o espaço do próprio corpo no mundo.
26.04.2021 | Por: Clara Averbuck
Passei a vida inteira me odiando. Quase inteira.
Passei a vida inteira colocando defeitos no meu corpo. Um corpo absolutamente padrão. Hoje eu sei. Mas na época também não era assim tanto, não. Era Kate Moss, sabe? As gaúchas. As altas. Loiras. Eu, só uma adolescente.
O peito era muito grande. Muito caído. Muito separado. Muito grande. Muito grande.
As vértebras colaram de tanto peso.
Eu queria diminuir. Queria ser como aquelas mulheres da publicidade dos anos 90, magras, tão desgraçadas, encolhidas, as pernas tortas, os olhos perdidos ao longe, precisando de ajuda, sei lá, murchas também, os ossos, ah, os ossos. E era era aquilo que eu queria, ossos aparentes, braços finos, pernas finas.
Eu queria diminuir. Ocupava espaço demais com meu corpo e com o tanto de coisa que eu falava.
O meu maior defeito era não ser muda. Aquilo me doía e eu não queria aquela dor.
Não importava o que teria que fazer pra aquilo ter fim.
Remédios. Dietas. Restrição.
Privação. Loucura. Desequilíbrio.
Vício.
Ossos.
Consegui os ossos que queria, que linda que você está, Clara! Maravilhosa! Magra!
Magra! Maravilhosa! Magra! Me achava maravilhosa mesmo. Louca. Descompassada por causa de Inibex, um remédio perigoso que vicia, que estraga, que corrói. Corroeu minha sanidade por anos e levou partes do meu cérebro que eu nunca mais vou ver.
Atrasou em mais de 10 anos meu diagnóstico de bipolar tipo 1. Esses remédios todos
só pioraram tudo.
Mas estava linda. Magra.
Acabava o remédio, engordava. Arrumava, emagrecia. Bebia, apenas, comer era para
os fracos. Vomitava escondido quando fraquejava.
Anos e anos disso. Anos e anos.
Veio minha filha e com ela outro senso sobre meu corpo. Quando ela saiu de mim, voltei à loucura. À loucura que tantas passam de “voltar ao normal”. De voltar melhor.
De provar que mesmo depois de ser mãe ainda dá pra ser atraente. Mais loucura.
Agora de outro tipo, mas ainda loucura e com certeza sequelas.
Veio o diagnóstico. Primeiro de depressão pós-parto. Mas não era. Era minha
bipolaridade massacrada vindo à tona anos e anos depois.
A loucura da magreza seguia puxando as outras como uma locomotiva de transtornos.
Muito grande. Ainda muito grande. Linda, mas muito grande. Linda de rosto. Vão se foder. Sou toda linda. Sempre fui.
E o pior: eu nunca fui gorda. Penso na raiva e na dor que as amigas gordas sentem, as que não cabem no mundo, na catraca, na minha amiga que precisou parir em uma maca de cavaloporque o hospital não abarcava seu corpo. Minhas amigas que optam pela pela bariátrica porque cansaram de sofrer até pra arrumar um shortinho.
Olha o que o mundo faz com as mulheres.
Eu sempre me achei inadequada mesmo sendo uma mulher branca, dentro dos padrões, não esquálida, mas não gorda.
Como chamava meu corpo? “Normal?”. Não, isso implicaria em dizer que o meu era e o das outras não? Um corpo, cara, sei lá, médio. Fluido, porque foi dos 48 aos 85.
Nos fizeram acreditar que existem apenas dois tipos de corpo.
Gordo.
Magro.
A jovem Clara não queria ser gorda. Gorda era ruim. Gorda era horrível. Era a ruína.
Que vergonha da Clara.
Deprimi por outros motivos. Fiquei sem comer, sem respirar, sem ver luz, sem viver.
Novamente os ossos apareceram.
Que linda, Clara! Que magra!
E eu destruída. Morta por dentro.
Que linda!
Anos e anos se passaram. Eu novamente tenho peito, bunda, coxas, barriga. Eu sou uma mulher abundante, me sinto maravilhosa, às vezes me sinto horrível. “Normal”, alguns vão querer dizer, e eu levo a mão à cabeça. Então, os outros não são normais?
Todos os corpos são normais.
Os gordos.
Os magros.
Os que andam e os que não andam.
Todos os corpos são normais.
Não é normal é as mulheres viverem em função disso, em privação, em loucura.
Não é normal que o valor atribuído a uma mulher venha do quanto ela se encaixa em um padrão.
Não é normal que as roupas não caibam.
Nós não temos que caber nas roupas. Elas têm que caber em nós.
Eu sou uma mulher grande. Não sou gorda, mas agora sei que não haveria nada errado em ser. Todos os corpos podem ser belos. O problema está no nosso padrão. Na nossa cabeça. No que aprendemos que é belo desde cedo, desde sempre. Vivemos imersos em apenas um padrão em um mundo cheio de corpos diversos, de todas as formas,
cores e tamanhos.
Minha bunda é grande, meus peitos idem. Não quero que diminuam. Quero que as coisas caibam. Se antes eu achava que tinha que diminuir pra caber no mundo, agora o mundo que se vire porque eu vou ocupar muito mais do que o espaço do meu corpo.
Inclusive com meu corpo seminu de 42 anos girando no pole dance.
Se virem se não gostarem.
Nunca foi problema meu.
Clara Averbuck é escritora e tem nove livros publicados. Sua obra já foi adaptada para o cinema e o teatro, tendo sido publicada em Portugal, Inglaterra e toda a América Latina
4 Comentários
4 respostas para “Desabafo: se antes eu achava que tinha que diminuir pra caber no mundo, agora o mundo que se vire”
Bravo! Ja tive arritmia, depressao e outros malestares por conta de remedios para caber no padrao; sofrimento subjetivo do krlho quando mais facil e torcer o nariz para os narizes torcidos. Avante!
Obrigada pelas palavras, Clara
Que texto incrível, Clara! Agradecida por você dividir sua história, angústias passadas e ressignificações correntes! Isso só fortalece: que reverbere e chegue a muitas de nós!!
Clara, sempre relevante.