Desventuras de uma míope

Isabel Guéron versa sobre os encontros e desencontros que dependem de um óculos de grau

13.06.2018  |  Por: Isabel Guéron

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Desventuras de uma míope

Estava com os óculos errados. Há muito tempo não ia ao oculista. Oculista não, oftamologista. Sempre confundia. E a coisa chegou num ponto que não podia mais adiar.

Primeiro foi aquela festa. Comemoração de final de filmagem, festinha de apartamento, equipe reunida. Luz estrobo, sala lotada e música alta. Umas dez pessoas adiante, estava o maquiador. E durante os dois meses de trabalho eles tinham ficado amigos íntimos. Ela havia contado toda a sua vida e compartilhado as angústias da profissão com ele. O maquiador era o primeiro da ordem do dia. Às seis e trinta e cinco da manhã, já colocava produtos importados na sua cara sonolenta. Para deixá-la linda. E ela se afeiçoou a ele por isso.

Então atravessou a sala, esbarrou em vários corpos e chegou diante dele numa felicidade de reencontro de amigos do segundo grau. A trinta centímetros do rapaz, ela finalmente viu o rosto com nitidez. Era um desconhecido. Em segundos, seu corpo inteiro resolveu seguir o comando que já tinha recebido do cérebro, e ela abraçou aquele desconhecido como se fosse o seu colega de set. E assim, numa sequência, deu meia volta, já murcha, o corpo todo demonstrando o peso do engano.

Dias depois teve o telefonema de um amigo.

– Você está cega ou eu te fiz alguma coisa? – Foi a pergunta que ouviu antes do alô. – Passei por você, acenei, você olhou pra mim e nem me respondeu!

– Não te vi. Juro. Acho que a miopia avançou, preciso ver isso. – E se desculpou. Ali descobriu que sua condição ocular estava aos poucos destruindo suas relações.

Desligou o telefone em choque. Quantas pessoas ela olhou e não viu? Quantos desafetos teria colhido nesse longo período embaçado, fora de foco? Poderia ter perdido inclusive possíveis trabalhos. Uma roteirista que não cumprimentou, um diretor que ignorou. Havia dias em que, ensolarada, ela decidia dizer oi a qualquer olhar que cruzasse com o seu. Como nas cidadezinhas do interior.

Mas depois do caso do maquiador trocado, andava cabisbaixa. Mirava pedras portuguesas, evitando abraçar desconhecidos. No cinema só enxergava na fila A. Ninguém quer ir ao cinema com alguém que senta na fila A, ela pensava. Estava virando uma pessoa de temperamento esquisito, confusa. Tudo com mais de três metros de distância era só um contorno. Uma cor de roupa e de cabelo.

No mês passado o vizinho acenou do outro lado da calçada e durante alguns segundos ela achou que fosse sua mãe. Sua própria mãe! Só desfez o engano quando ele subiu numa moto. Era bem improvável sua mãe de moto com quase 80. Os óculos errados já começavam a criar situações surreais; cenas de Buñuel. O mundo inteiro estava fora da sua retina.

Marcou então uma consulta. Tinha um moderado distúrbio de refração. Nem leve, nem grave. Saiu direto para ótica e investiu em um par de óculos grandes e lindos. Queria espaço periférico e auto estima. Quando os vestiu, tonteou. Uma nitidez avassaladora voava em sua direção. Uma tontura de filme em terceira dimensão. Um desequilíbrio de tanto enxergar.

– É normal – disse o rapaz da ótica – ainda mais a senhora que está há tanto tempo usando os óculos errados.

Ela sorriu, meio sem jeito, vendo tudo. Fora da loja os letreiros berravam à sua volta. Lembrou do filho mais velho, que alfabetizando, gritava na janela do carro. Um erre! Um efe! Olha mãe, um cê! Tudo era exclamação.

Então ela sentiu um nó na garganta. Deve ter sido a lembrança do filho pequeno. Como crescem rápido! E pensou que de perto sempre esteve enxergando bem. Era uma boa hora para óculos novos, esse menino espichado, voando assim. E voltou pra casa a pé, para verificar o que tinha deixado passar naquele caminho. Era tanta coisa, tanto detalhe. Como se todas as letras miúdas do mundo desfilassem em negrito na sua frente. E ela sorriu sem querer.

3 Comentários

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3 respostas para “Desventuras de uma míope”

  1. cristina lopes disse:

    adorei!

  2. Stephane Santos disse:

    Meu deus estou passando exatamente por isso aaaa amei

  3. Patricia Eugênio disse:

    Que texto maravilhoso! Adorei! Muito divertido! 😍

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