Dorothy Parker, minha amiga imaginária

Escritora pouco conhecida e muito citada escrevia ficção em cima das próprias experiências antes de autoficção ser modinha

17.07.2019  |  Por: Gaia Passarelli

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Dorothy Parker, minha amiga imaginária

A santa padroeira de todo mundo que escreve autoficção, pro bem e pro mal, Dorothy Parker pode ser culpada de muitas coisas — usar os amigos como material para escrever, soltar linhas cruéis e vorazes, morder a mão que a alimentava. Mas ela não pode ser acusada de ser… chata.

Também não é a primeira escritora a ser mais citada do que realmente lida. Nem a última. Até mesmo por causa da natureza das coisas que escreveu e, principalmente, falou, é muito mais fácil citar a Dorothy Parker. Seu habitat natural é o de poemas curtos, pequenos contos de autoficção e one liners — quase um século depois de sua passagem pela vida literária de Nova York, ela ainda é considerada uma das mais afiadas mentes da história cultural da cidade, além de figura essencial para publicações como a Vanity Fair e a New Yorker. Não por acaso foi (como muitos de seus colegas) para Hollywood escrever para os filmes aquilo que fazia melhor: diálogos rápidos, espertos e charmosos.

Dorothy passou a vida sem conseguir escrever um romance. Seu trabalho mais longo, o premiado conto Big Blonde (saiu no Brasil nos anos 1990, dou detalhes no último parágrafo), não chega a ser sequer uma novela. Ela se doía com isso, porque acreditava naquele lugar-comum de que um escritor pra ser escritor tem que escrever um romance, publicar algo que literalmente fique em pé. E ela tentou, inclusive se refugiando na Europa mais de uma vez com essa intenção. Mas as contas estavam sempre acumuladas, as noitadas seguidas de ressaca não ajudavam e, pior, ela levava meses para ficar feliz com o resultado de poucas páginas. Outro clichê da escrita prega que cada pessoa tem um ritmo, mas isso não diminui o fato de que ela se referia ao trabalho mal-sucedido como “aquele maldito livro”.

Eu chamo Dorothy Parker de Dorothy pelo mesmo motivo pelo qual chamo Caio Fernando Abreu de Caio – seus textos, que leio e releio desde a adolescência, têm um tom confessional que funciona como se você estivesse numa mesa de bar com a pessoa. Mas, ao contrário dele, com ela eu sinto algo em comum. Talvez ela pudesse me dar um conselho de como não acabar como ela acabou – sozinha, com problemas de saúde, sem um tostão, insatisfeita com a própria obra. Ou quem sabe não seja tão ruim assim. Afinal, reza a lenda que o dossiê sobre a Dorothy Parker na CIA tinha mais de 90 páginas, o que certamente caracteriza uma vida interessante.

Meu entendimento com a Dorothy Parker se dá naquele lugar de jamais me sentir segura e tentar mascarar isso com uma aura de força interior muito forte

Interessante é a chave aqui. Dorothy Parker (o sobrenome nome ela herdou do primeiro marido) nasceu em uma família rica, perdeu a mãe ainda criança e passou o resto da vida tentando encontrar seu lugar. O célebre restaurante do Hotel Algonquin, a redação da Vogue e da Vanity Fair, as festas da Paris dos anos 1920, a enorme propriedade no interior de Nova York que inspirou O Grande Gatsby de Fitzgerald, as reuniões do Partido Comunista em Los Angeles, as salas de roteiro dos estúdios de Hollywood e Madri em chamas durante a Guerra Civil Espanhola são lugares presentes na sua vida tanto quanto camas de hospital ou quartos dos hotéis onde viveu em Nova York (invariavelmente com cachorros). E ela não se entendeu, não se encontrou em lugar algum. No fim da vida disse que o único orgulho que teve foi o de ser pressa por liderar um protesto em Boston contra a pena de morte de dois anarquistas italianos acusados injustamente de homicídio. E terminou em Baltimore, onde suas cinzas repousam em um jardim na sede da National Association for the Advancement of Colored People, entidade para a qual deixou os poucos bens que tinha (leia aqui).

A sensação de estranhamento, de algo que falta, de insatisfação difícil de definir é uma constante em praticamente tudo o que deixou escrito, sejam histórias curtas com foco em noitadas e ressacas, sejam poemas sobre suicídio.

Meu entendimento com a Dorothy Parker se dá naquele lugar de jamais me sentir segura e tentar mascarar isso com uma aura de força interior muito forte. No uso constante de sarcasmo, auto-depreciação e ironia. Na tragédia que é ter bloqueio criativo quando não se é infeliz o suficiente. Nas contas que se acumulam, na impossibilidade de trabalhar com qualquer outra coisa que não seja a palavra escrita, na vontade de largar tudo mas sempre voltar pra onde pertenço – ela Nova Iorque, eu São Paulo.

Para quem quer conhecer: vale procurar Big Loira e Outras Histórias de Nova York, publicado aqui nos anos 1990 pela Companhia das Letras, no site EstanteVirtual e em sebos. Para quem lê em inglês tá mais fácil: o The Portable Dorothy Parker nunca parou de ser publicado. A versão atual é um livrão de mais de 600 páginas editado pela Penguin Classics que traz poemas, histórias curtas, crítica literária e teatral e cartas que Dorothy trocou com amigos e colaboradores ao longo da vida. Também há um capítulo inteiro dedicado a ela em Afiadas (que saiu ano passado no Brasil pela Todavia e que eu comentei nesse post aqui na Hysteria), em que ela aparece como “uma das mulheres que ajudou a moldar o pensamento cultural no século XX”. Nada mal pra uma amiga imaginária.

 

Gaía Passarelli é jornalista e escritora, autora de Mas Você Vai Sozinha? (Globo Livros, 2016). Nascida e criada em São Paulo, mora num prédio velho da Bela Vista com o filho, três gatos e uma crescente coleção de guias de viagem. Você a encontra no twitter @gaiapassarelli e no site gaiapassarelli.com

 

 

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