‘É a crise, você sabe’

Em seu segundo livro, 'Manual da Demissão', Julia Wähmann dá novo destino aos posts em que relatou com humor nas redes sociais a sua saga de recém-desempregada

21.03.2018  |  Por: Maria Clara Drummond

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‘É a crise, você sabe’

Foi através de uma amiga em comum que eu entrei contato com o trabalho da Julia Wähmann, circa 2012. Na época, ela era jornalista e alimentava o divertidíssimo blog Flerte for Dummies. Imediatamente eu me encantei – e me identifiquei – com a autoironia com que ela tratava suas desventuras amorosas, referindo a seu alter-ego como “heterossexual não praticante” e a seu grupo de amigos como “socialmente equivocados”. Essa maneira de lidar com aparentes fracassos me pareceu um antídoto necessário numa época de selfies perfeitas e sucesso irretocável ostentado nas rodas de conversa em festinhas e redes sociais. Portanto, estava ansiosa para o lançamento do seu primeiro romance, Cravos (Editora Record, 2016), um livro sensível porém sem o senso de humor que eu esperava. No entanto, expectativa foi cumprida com seu segundo romance, o hilário Manual da Demissão (Editora Record, 2018).

Manual da Demissão é um livro tão gostoso de ler que dá para ser finalizado de uma vez só. Os nomes de capítulos que remetem a bordões que repetimos sem pensar e trechos de música popular funcionam como uma versão cômica da repetição enlouquecedora da burocracia empresarial. Em 2018, o Bartleby de Julia repete o tempo inteiro: “É a crise, você sabe”, e quando somos guiadas pelas suas frases cheias de referências pop o desespero trabalhista dos últimos anos não soa tão desesperador.  Afinal, é uma escolha a lente pela qual olhamos o mundo, a comédia ou a tragédia, e rir de si mesmo se transforma numa virtude primordial em dias de depressão.

“Ao passar do tempo, a tragédia se transforma em comédia, porque na medida em que os anos passam, emerge o absurdo cósmico dos mais terríveis eventos.” A frase foi dita pelo personagem de Alan Alda, no filme Crimes e Pecados, de Woody Allen. Para Julia, não foi preciso mais que alguns dias para que a tristeza de ter sido demitida de um trabalho que adorava ganhasse ares extremamente divertidos em seus relatos no Facebook. As anedotas chamaram a atenção de Carlos Andreazza, editor executivo da Editora Record, e de sua agente literária, Lucia Riff, que sugeriram que aqueles microcontos kafkanianos de filas no sindicato, Caixa Econômica Federal e Ministério do Trabalho tivessem um destino maior que a efemeridade da web. Ambos viram naqueles trechos publicados algo tragicômico em paralelo à intensificação do discurso da crise e do desemprego no Brasil. A ideia era aproveitar um tema espinhoso e cada vez mais presente nas nossas vidas. Para saber mais sobre esse processo, conversamos rapidamente com Julia.

 

 

Qual a função das frases – tão conhecidas por nós – e que são repetidas ao longo do livro inteiro?

Acho tem a ver com as tentativas que fazemos – e que fazem ao nosso redor – de lidar com esses momentos delicados da vida, em que estamos meio na merda. Como se fossem mantras que repetimos, como quando o Bob Marley canta “every little thing is gonna be alright”. Uma espécie de tentativa de reprogramar o cérebro em meio a todo o pessimismo.

É difícil não pensar o livro como autoficção dado que você relatou detalhes da sua demissão no Facebook. Como você acha que fica a autoficção em tempos de rede social? 

Acho que as redes sociais jogam contra e a favor da autoficção, ao mesmo tempo. Por um lado elas banalizam essas tentativas de fazer literatura a partir de si. Por outro, ao menos para mim, serviram, por um tempo, como testes, ou pequenas experimentações, como primeiras etapas de fabulação que, para um livro, ganham muitas outras camadas. As redes, na verdade, têm essa ambiguidade em relação a quase tudo, né?

O livro é muito diferente do seu primeiro romance, Cravos. Por que você acha que ganharam tons tão diferentes?

Manual da Demissão tem um deboche que se esboçava no André quer Transar, um zine que saiu em 2015. Em alguma medida o humor camufla a melancolia e a tristeza, porque no fundo o Manual da Demissão é um livro que tem muita dor. E falar de desemprego do ponto de vista de uma classe média/média alta era algo que, em algum ponto, só me pareceu possível se eu usasse esse deboche, mesmo porque não queria escrever um livro que deprimisse tanto os leitores.

Seus personagens não têm nome, são só as iniciais, criando uma certa despersonalização, que novamente me lembrou o universo burocrático das milhões de baias de um escritório. O mesmo recurso é usado também em Cravos. Por que essa escolha?

No Manual da Demissão o recurso foi proposital mesmo, pelas razões que você aponta (no Cravos até não se justifica tanto, pensando agora). Poderiam ser números, que também trariam um pouco da relação patrão/empregado, do cartão de ponto e tudo mais do universo corporativo, além do acúmulo, da progressão do desemprego, enfim, dessa epidemia que está aí.

1 Comentários

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Uma resposta para “‘É a crise, você sabe’”

  1. Thiago Bezerra disse:

    Com um texto tão bem escrito fiquei até curioso pra ler. A verdade é que, em meio aos caos atual, as pessoas precisam mesmo do humor negro, pra reprogramar a mente e conseguir força pra continuar. Se nao fosse a crise(kkk) compraria esse livro com maior prazer 😌

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