É tempo de repensar o tempo: a bicicleta como ressignificação do percurso

Se ir e vir se tornou tão banal e experimentar novos lugares e novas dinâmicas se tornou tão tentador, o percurso passou a importar e a qualidade da experiência também. Mas o cenário para quem quer se locomover nas cidades brasileiras é desafiador e muitos ainda não se sentem aptos a ocupar o espaço das ruas

03.06.2022  |  Por: Thais Viyuela

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É tempo de repensar o tempo: a bicicleta como ressignificação do percurso

Outro dia conversava com um homem que me dizia que a geração de hoje é a geração do desapego, dos pertences dentro de uma mala, do home office de qualquer lugar do mundo, das relações múltiplas, frívolas e até rasas. Mais do que desapego, entramos na era da ressignificação: com tantas possibilidades disponíveis, preferimos ativamente dar a devida atenção às poucas coisas que escolhemos que permaneçam em nossas vidas. E se ir e vir se tornou tão banal e se experimentar novos lugares e novas dinâmicas se tornou tão tentador, o percurso passou a importar e a qualidade da experiência também. Mas o cenário para quem quer se locomover nas cidades brasileiras é desafiador e muitos ainda não se sentem aptos a ocupar o espaço das ruas.

Em primeiro lugar, nas cidades as construções crescem seus muros numa constante afirmação de medo, de autoproteção e de indiferença ao que é de fora. Os pedestres e ciclistas ficam à mercê de calçadas precárias e infraestruturas cicloviárias descontínuas e desrespeitadas, tendo que impor seu próprio espaço na extensa estrutura viária destinada ao automóvel. Simbolicamente a cidade nos diz que tudo que é estrangeiro a um terreno deve ser tratado como criminoso e que o meio urbano pertence aos individualmente motorizados.

É tempo de discutir a falta de hospitalidade de uma cidade que dá as costas ao ser humano.

Em segundo lugar, vendido como símbolo de autonomia, praticidade e agilidade, o carro é hoje um dos fantasmas que consomem boa parte do salário e tempo de muitos proprietários. Além do preço do combustível, que vem aumentando de forma galopante, poucos são os que colocam na ponta do lápis o valor mensal do IPVA, da documentação, do seguro, das revisões preventivas, das manutenções corretivas, dos pedágios e dos estacionamentos. Quantias que, com alguma educação financeira, poderiam ser revertidas em estabilidade, planejamento e mais qualidade de vida. Como se não fossem só os valores monetários, quem depende do carro se vê muitas vezes preso às dinâmicas imprevisíveis do trânsito, que geram stress, brigas e risco de multas e colisões. 

Com o custo de vida mais alto, mais gente tem ponderado a bicicleta como meio de transporte na cidade, principalmente pela economia de dinheiro, de tempo e pelo bem-estar físico e mental

O sistema de transporte motorizado se tornou não só um assunto de mobilidade urbana, como também de saúde pública, sendo o trânsito urbano uma das principais queixas do estresse cotidiano e sendo os sinistros de trânsito uma das principais causas de morte entre homens no país. Ao falar de carros, o recorte de gênero não é à toa: historicamente performando um símbolo de status e atrelado à figura masculina da família, a posse e o uso do carro – e o desrespeito às leis – ainda hoje são símbolos de virilidade, potência e poder. A condução agressiva de um veículo, muitas vezes em velocidades acima do recomendado para as vias, e eventualmente combinada com o consumo irresponsável da bebida alcoólica, é hoje uma das principais chamadas nas manchetes de sinistros envolvendo a morte de pedestres, ciclistas e os próprios usuários de carro.

É tempo de priorizar a saúde dos corpos frente a máquinas de uma tonelada.

E se há tanto a ser repensado, o momento é agora. Com o custo de vida mais alto, mais gente tem ponderado a bicicleta como meio de transporte na cidade, principalmente pela economia de dinheiro, de tempo e pelo bem-estar físico e mental. Além disso, com a crescente oferta de produtos de micro mobilidade elétrica, vemos novas formas de experimentar a cidade, dando a oportunidade também a corpos que estão menos fisicamente preparados para a atividade física puramente mecânica. Falamos não mais de corpos de atletas de performance em cima da bicicleta, mas também corpos cotidianos, corpos idosos, cansados, trabalhadores, infantis, gordos, grávidos, corpos com deficiência. Com mais gente saindo de dentro da lataria dos carros e corpos mais diversos circulando ativa e autonomamente no meio público, as conexões se tornam necessariamente mais humanas e afetivas. As pessoas se tornam muito mais democraticamente abertas e vulneráveis umas às outras. E se originalmente fomos educados a desconfiar do próximo como uma ameaça, hoje precisamos vê-lo como uma promessa.

Foi a promessa que vi no sorriso de uma ciclista urbana numa manhã de sexta-feira cinza, em cima da ciclovia da Avenida Consolação com a Rua Caio Prado, na região central de São Paulo. Desatenta ao farol que se fechara e atribulada com os meus compromissos do dia, não percebi a presença da ciclista próxima a mim e freei a minha bicicleta abruptamente. Ela, percebendo o susto, sorriu e falou olhando nos meus olhos “Bom dia para você!” Creio que não vou voltar a vê-la, mas aquele cumprimento sincero mudou o restante do meu dia e, desde então, a forma como eu me comporto frente a outras tantas pessoas desatentas, atribuladas e estressadas. A semente que ela plantou hoje eu semeio no dia a dia, esperando que mais gente entenda que sorriso se cria com sorriso e que todos cuidamos uns dos outros, numa atenção coletiva.

Se antes o tempo do deslocamento entre a casa e o trabalho, entre a faculdade e o supermercado, eram vistos como meramente operacionais, hoje a tal geração do desapego entende que é tempo de ressignificação. Na fuga à ansiedade gerada pelas redes sociais e na fuga às propagandas que se engendram no nosso cotidiano, o transporte por bicicleta é um alívio e uma injeção de hormônios do bem-estar. A bicicleta, que mora nas memórias infantis de boa parte da população brasileira, começa a retomar seu espaço no imaginário atual de cidade, saindo das pequenas vilas de interior, das paisagens litorâneas e dos contextos periféricos e de menor poder aquisitivo para ocupar também os grandes centros comerciais que detém maior visibilidade e maior poder de mudança estrutural. A bicicleta, que hoje ainda está vinculada a um esporte de alto risco, alto investimento em equipamentos específicos e pouco incentivo governamental, também está criando espaço para projetos independentes e questionadores, dando luz ao poder de transformação social, ambiental e cultural do esporte na sociedade. Com os olhos no futuro, a geração do desapego também envelhece ao passo que a preocupação com o meio-ambiente, com a qualidade de vida e com a longevidade física aumenta, trazendo a urgência da mudança de hábitos. Desde a pandemia, escolher um modo de vida mais sustentável está deixando de ser uma opção pessoal e se tornando uma prioridade coletiva.

É tempo de se conectar ao que é humano e vivo. É tempo de se conectar com o dono da banca na esquina, com o guardinha da rua ao lado, com o porteiro que sempre puxa assunto sobre bicicletas na espera do elevador, com a sensação do vento gelado nos dias frios, com o barulho do pneu passando por cima das folhas secas nos locais arborizados, com a sensação gostosa da sombra nos dias quentes, com o cheiro da cafeteria que assa bolinhos de baunilha todo dia às 6h30, com a delícia de tomar chuva num fim de tarde de verão no caminho de volta para casa, com o entregador de pizza que, apressado, faz graça empinando a bike, com a criança que vem desengonçada na contramão da ciclovia, com o carroceiro que ajeita a carroça para a bicicleta poder passar.

É tempo de baixar os muros, os vidros e os capacetes. É tempo de se mostrar vulnerável e aberto. É tempo de ressignificar o tempo que dedicamos ao deslocamento. É tempo de cumprimentar sorrindo.

 

Thais Viyuela é arquiteta, documentarista, comunicadora, gerente estratégica da marca biker Specialized Brasil e busca contar histórias pra mantê-las vivas

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