Em 1901 duas mulheres se casam na Igreja
A história real das espanholas Elisa e Marcela, que deram um jeito de celebrar seu matrimônio 104 anos antes de o país oficializar a união homoafetiva, acaba de estrear na Netflix pelas mãos da diretora Isabel Coixet
10.06.2019 | Por: Nataly Cabanas
Espanha, começo do século XX. É num pequeno povoado chuvoso na Galícia, num ambiente de extrema religiosidade e locação perfeita para mofar sonhos e desejos de meninas púberes, que irrompe a amizade e logo a intensa paixão entre as estudantes Marcela Gracia Ibeas e Elisa Sánchez Loriga. Esse é só o começo do drama de época Elisa & Marcela, dirigido pela catalã Isabel Coixet e disponível na Netflix.
Como estamos falando de mais de um século pra trás na linha do tempo, temos na história um pai desconfiado – não exatamente fã de livros ou de mulheres que gostem de ler – que envia a filha para um internato em Madri e também toda a sorte de falta de aceitação. Mas há também, claro, uma linda história de amor. Que mesmo em anos sem contato físico mantém a chama através de cartas e memórias.
Já livres do pai, a dupla encara então o ódio da sociedade e bola um plano para poder viver juntas com tranquilidade. Usando a identidade de um primo falecido, Elisa corta o cabelo, passa a usar roupas masculinas e transforma-se em Mário. O pároco de um povoado vizinho não percebe o disfarce e celebra o casamento. E assim, em 8 de junho de 1901, Elisa e Marcela entram para a História como o primeiro casal homossexual a se unir com a chancela da igreja na Espanha. Olé!
Mas diferente do que imaginavam, o sim foi só o começo de uma saga de perseguições, prisões, despedidas, fugas e muito sofrimento. E é isso que o filme traz com maestria.
Mas por que se metem na vida dos outros?
Escutar a história das duas mulheres durante uma viagem pelas aldeias de Galícia foi suficiente para convencer a diretora a escrever o roteiro. Com o texto pronto, bateu na porta de muitas produtoras e por dez anos ouviu sonoros nãos. Mas em 2018 essa história de amor e resistência finalmente encontrou o seu lugar. A produtora de Barcelona Rodar y Rodar abraçou o filme e levou-o à Netflix, que topou na hora. E, assim, o longa de baixo orçamento, rodado durante quatro semanas entre Galícia e Catalunha, ganhou o mundo – e hoje pode ser visto em 190 países na plataforma de streaming.
Um dos pontos altos de Elisa & Marcela é a belíssima fotografia em branco e preto de Jennifer Cox. O filme também flerta com a videoarte e o cinema mudo. Nos créditos finais, a canção Nem Eu, de Dorival Caymmi, embala fotos atuais de casamentos entre mulheres, e Coixet faz à sua maneira uma homenagem à união de mulheres quase sempre invisibilizadas.
Talvez Elisa e Marcela possam ser consideradas ativistas dos direitos LGBTQ+ avant la lettre, já que deram um jeito de realizar seu casamento 104 anos antes de a Espanha oficializar a união homoafetiva. Em uma das sequências do longa, com ares de martírio bíblico, Elisa sofre um apedrejamento. Trágica coincidência, no mesmo dia da estreia do filme, começou a circular pelas redes a foto de um casal de moças que tinha sofrido ataque homofóbico dentro de um ônibus em Londres. A legenda para a foto das duas mulheres com os rostos ensanguentados também poderia ser a frase que Marcela repete à sua vizinha, ao padre e ao médico: “Mas por que se metem na vida dos outros?”
Em sua conta no Instagram Isabel dedicou o filme “a todas as pessoas que passam a vida tentando se encaixar em um mundo que não está pensado para elas. Aos diferentes, aos estranhos, as mulheres e aos homens que não se sentem nem mulheres nem homens, apenas pessoas. Aos que amam”.
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