Entre o véu e o mar: as surfistas do Irã

Conheça a trajetória de Shahla Yasini, iraniana que levou o esporte ao país

06.06.2019  |  Por: Aline Takashima

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Entre o véu e o mar: as surfistas do Irã

Foto: Marion Poiseau

O surfe no Irã nasceu em Ramin, uma pequena vila de pescadores no extremo sul do país, na província de Baluchistão. A região remota é rodeada de montanhas com formatos únicos e um deserto que lembra Marte. Foi ali, naquele cenário pitoresco, fronteira com Paquistão e Afeganistão, que três mulheres levaram o esporte para o país. Shahla Yasin liderava a missão, seguida pela irlandesa Eskey Britton e por Mona Seraji, primeira snowboarder profissional do Oriente Médio.

Desde criança Shahla Yasini ama o oceano. Quando pequena, corria da mãe na areia e nadava com a tia na praia. Aos 18 anos ela fez um curso de salva-vidas, aos 19 mergulhou profissionalmente e aos 21 entrou com sua prancha na água em Ramin. “Eu sinto uma conexão forte com o mar e a energia da natureza”, explica com uma voz doce e suave.

Shahla nasceu em Sistan, uma cidade situada no Baluchistão, um território conhecido por ser um dos mais conservadores e tradicionais do país. A surfista conta que naquela parte do Irã alguns pais não gostam que as suas filhas sejam vistas em público e não permitem nem que elas realizem atividades físicas. Mas, com as pranchas na praia sendo carregadas por mulheres, as mudanças estão acontecendo.

Quando as atletas pisaram na areia grossa de Ramin, no ano de 2013, algumas crianças curiosas se aproximaram e ajudaram a levar as pranchas até o mar. Um garoto perguntou se os homens também podem surfar, pois as primeiras surfistas que ele viu na vida foram aquelas mulheres. Uma questão pertinente em um país teocrático, onde as leis são baseadas na religião.

Como o surfe no Irã começou com um grupo de mulheres, ninguém pode afirmar que é um esporte masculino. E, assim, a modalidade foi estimulada pelas autoridades religiosas locais.

Shahla, Eskey e Mona. Foto: Marion Poizeau

É importante lembrar que desde 1979 o Irã é uma república islâmica. O governo proíbe as mulheres de andar de bicicleta em público e participar de eventos esportivos masculinos – o que já resultou até em prisão. Em 2014, uma britânica de origem iraniana, Ghoncheh Ghavami, passou cinco meses na cadeia em Teerã após assistir a uma partida de vôlei masculino. Nos Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro, em 2016, a iraniana Darya Safai organizou um protesto nos estádios com o rosto pintado com as cores da bandeira do seu país e um cartaz em inglês que dizia: “Deixem as mulheres iranianas entrarem em seus estádios.”

Espero que as mulheres tenham o direito de escolher a maneira de se vestir no surfe

O feito de Shahla e suas comparsas foi acompanhado de perto pela diretora francesa Marion Poizeau, que em 2014 lançou o documentário  Into the Sea. Ela conta o que viu da areia enquanto as surfistas desbravavam as águas. “As autoridades ficaram muito felizes em ver essa atividade na costa. Crianças e homens da aldeia se juntaram a nós para aprender a surfar”, conta. O filme independente que acompanhou todo esse processo foi apresentado em mais de 30 festivais ao redor do mundo. Recebeu o prêmio de Melhor Documentário de Surfe no Festival de Cinema de Surfe e Skate de Paris e de Melhor Documentário no Sportel de Mônaco – Convenção Mundial de Mídia e Tecnologia Esportiva. E inspirou a fotógrafa italiana Giulia Frigieri a viajar até o Irã para registrar aquela revolução liderada por mulheres.

Giulia conheceu Shahla em setembro de 2017, em Chabahar, uma cidade portuária localizada na costa do Golfo de Omã. Antes do primeiro encontro, haviam trocado apenas alguns e-mails. “Quando enviei uma mensagem para ela, percebi pela resposta como era gentil. Estava ansiosa para vê-la”, conta a fotógrafa. Elas estavam em um táxi a caminho de Ramin, tímidas e caladas, até que a surfista ofereceu um cigarro. Foi como se lesse os pensamentos de Giulia. A fotógrafa realmente queria fumar. Mas respondeu, sem graça: “Acho que não seja uma boa ideia uma mulher fumar em público.” Shahla imediatamente começou a rir, e replicou: “Eu sei, mas é que eu queria muito um cigarro.”

Além de não poder fumar, de acordo com a lei iraniana, as mulheres devem estar cobertas da cabeça aos pés, mesmo quando praticam esportes. O que é um desafio para a prática do surfe. Quando Shahla surfa, ela não sabe se cuida do lenço que pode cair ou controla a onda. Mas, apesar dos empecilhos, isso não impede que ela pratique o esporte e até ensine para pessoas interessadas. “Os homens do Irã não têm problemas em aprender com uma mulher”, explica Shahla.

Os garotos da comunidade treinam todos os dias, organizam eventos e encorajam os turistas a aproveitar o mar. Hoje, a praia de Ramin conta com uma escola de surfe e pousadas para receber os estrangeiros. Toda vez que Marion visita a região, ela se surpreende com a hospitalidade do povo baluche. “Eu me sinto em casa quando vou lá. Descobri uma cultura incrível e fiz amigos muito queridos.” E complementa: “Agora há uma comunidade de surfe no Irã. Admito que estou feliz em ver tudo o que aconteceu desde a minha primeira viagem ao país.”

Atualmente, Shahla não é a única a surfar em Ramin. Há um grupo de mulheres da capital Teerã que atravessa o Irã para pegar ondas no verão. “O esporte é conhecido no país. Embora existam limitações para as mulheres, nós estamos tentando”, explica a atleta. A cada onda surfada mais uma pequena barreira é vencida. “O direito das mulheres avança em doses homeopáticas em todo o mundo. Você tem que começar com algo. E a ação é sempre o primeiro passo para a mudança – com ou sem o véu”, defende Marion.

Shahla deu o primeiro passo no surfe, e já realizou inúmeros feitos. Ainda assim, almeja mais para as iranianas. “Espero que as mulheres tenham o direito de escolher a maneira de se vestir no surfe, possam mostrar suas capacidades e almejar bons rankings em competições.” Que assim seja.

 

Aline Takashima, jornalista freelancer que escreve sobre comportamento, cultura e viagem, adora descobrir e escutar histórias. Vive com os pés na Noruega e os olhos no mundo

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