Entrevista com o Produto | Batedeira

Em mais um dos seus hilários diálogos com objetos cotidianos, Alessandra Colasanti conversa com a icônica batedeira

16.05.2018  |  Por: Alessandra Colasanti

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Entrevista com o Produto | Batedeira

ALESSANDRA: E o papo de hoje é com ela! O utensílio doméstico mais icônico da cozinha ocidental. Com vocês, a BATEDEIRA!
(Palmas)
ALESSANDRA: Batedeira, é uma honra ter a senhora aqui.
BATEDEIRA: Obrigada, querida, mas não precisa me chamar de senhora. Eu não sou tão respeitável assim.
ALESSANDRA: Ah, não?
BATEDEIRA: Ou você acha que eu passei a vida toda numa cozinha fazendo bolos?
ALESSANDRA: Aproveitando a sua deixa, muita gente não sabe, mas nos anos 90 você foi baterista de uma banda de rock de garagem. Como foi a experiência, por que entrou nessa e por que pulou fora?
BATEDEIRA: Foi uma loucura. Eu não sei o que deu em mim naquela época, eu simplesmente achava que algo além da gastronomia me complementaria, quando o óbvio ululante é que eu nasci para produzir alimentos dentro de uma cozinha. Foi uma época de busca pelo meu verdadeiro eu e posso dizer que eu me encontrei fazendo o caminho de volta, voltando às minhas origens. Hoje eu tenho certeza de quem sou e qual é a minha missão neste planeta.
(Alessandra faz anotações)
BATEDEIRA: Fora que eu era um desastre como baterista! (Risos) Destruí inúmeras peles de bumbos, caixas e surdos, só quem me aguentava mesmo eram os pratos!
ALESSANDRA: Por isso o apelido no meio musical de Batedeira, a Bárbara?
BATEDEIRA: Haha, como você sabe disso?! Sim, era por isso. Mas já passou. A verdade, Alessandra, é que eu nunca saí da cozinha. A experiência toda foi muito simbólica. Afinal, a bateria é considerada a cozinha de uma banda.
ALESSANDRA: Qual conclusão você tira de tudo isso?
BATEDEIRA: O Universo fala com você o tempo todo, só é preciso ler os sinais.
ALESSANDRA: A moda das batedeiras está voltando?
BATEDEIRA: Graça a Deus, sim. Com o avanço da gourmertização houve um aumento muito grande na demanda por batedeiras. Eu, particularmente, amo as vermelhas. São arrojadas e alegram o ambiente.
ALESSANDRA: Enfeite ou função?
BATEDEIRA: Enfeitar também é uma função.
ALESSANDRA: E o estigma de eletrodoméstico sem serventia que fica encostado, pegando poeira, te incomoda?
BATEDEIRA: Olha, cada um sabe de si, da minha vida cuido eu e de encostada eu não tenho nada. Mas reconheço que algumas colegas não têm a mesma sorte.
ALESSANDRA: Carma?
BATEDEIRA: Eu sou cristã, portanto, não posso entrar nessa onda de carma.
ALESSANDRA: Conte algo que não sei.
BATEDEIRA: Eu toco um projeto social, um santuário de batedeiras esquecidas. É triste não termos nosso valor reconhecido. Durante décadas nós éramos a alegria da criançada. Quem nunca lambeu uma batedeira suja de massa de bolo?
ALESSANDRA: É, eu lambi.
BATEDEIRA: E gostou?
ALESSANDRA: Bom, com açúcar e antes da alfabetização, tudo fica mais fácil.
BATEDEIRA: Mas o que as pessoas precisam entender, Alessandra, é que o significativo no gesto de se lamber uma batedeira, não é o sabor da massa propriamente, isso é irrelevante, o que vale é o ritual! E os rituais são fundamentais para a raça humana. A vida de vocês é um colar onde cada pérola é um ritual, do nascimento à morte.
(Tempo)
ALESSANDRA: E o fecho?
BATEDEIRA: Do colar?
ALESSANDRA: Sim.
(Batedeira reflete)
BATEDEIRA: O fecho é o portal.
ALESSANDRA: Qual é o seu ritual de beleza?
BATEDEIRA: Batedeiras não têm rituais, com batedeira é on, off, velocidade, 1, 2 3 e cabô! A minha beleza vem de fábrica.
ALESSANDRA: Você acredita que batedeiras têm o poder de unir mães e filhos?
BATEDEIRA: Com certeza! Quando as mulheres cozinhavam de verdade, quando eram elas as responsáveis pelo alimento da família, as crianças estavam sempre por perto, na cozinha, em volta da saia da mãe. Comida é amor. Hoje, a mãe enfia um celular na mão da criança e na outra um iogurte. Acho lamentável. E digo mais, me orgulho de nunca ter entrado na internet!
ALESSANDRA: Olham, radical. Ideologia ou tecnofobia?
BATEDEIRA: Transo mais hardware do que software.
ALESSANDRA: Me fala mais do santuário.
BATEDEIRA: As batedeiras chegam lá em frangalhos. Não apenas física, mas sobretudo, psicologicamente. A rejeição esfacela qualquer psique.
ALESSANDRA: E como saem da lama?
BATEDEIRA: Muitas se dedicam a trabalhos manuais como crochê, tricô e pintura em porcelana, podemos trabalhar horas a fio.
ALESSANDRA: E que mais?
BATEDEIRA: Temos as rodas de conversa que terminam com danças circulares em que louvamos as batedeiras que vieram antes de nós.
ALESSANDRA: Que bonito. E quando nasceu a primeira batedeira?
BATEDEIRA: Em 1908.
ALESSANDRA: Ah, em plena era vitoriana… faz sentido.
BATEDEIRA: Na verdade o reinado da rainha Vitória terminou em 1901.
(silêncio)
ALESSANDRA: Me confundi.
BATEDEIRA: E em 1915 as batedeiras já estavam presentes na maioria dos lares americanos.
ALESSANDRA: Um case de sucesso.
BATEDEIRA: Modestamente.
ALESSANDRA (): “Hoje eu tenho certeza de quem sou e qual é a minha missão nesse planeta.” Qual é o seu propósito de vida?
BATEDEIRA: Ajudar a vida da mulher.
ALESSANDRA: E no caso de homens que queiram bater um bolo?
BATEDEIRA: Não me oponho.
ALESSANDRA: São muitos chefs homens hoje em dia.
BATEDEIRA: É verdade.
ALESSANDRA: O que você acha sobre o fato de a cozinha doméstica ser domínio da mulher, mas quando temos prestígio e dinheiro envolvidos, pipocarem tantos homens cozinheiros? Já parou pra pensar nisso?
BATEDEIRA: Na verdade, não. Gosto quando sou tocada por um homem.
ALESSANDRA: Te entendo. Sabia que quando eu era criança eu adorava fazer bolo marmorizado?
BATEDEIRA: Que graça. E hoje, tem batedeira em casa?
ALESSANDRA: Não. Desculpa.
BATEDEIRA: Tudo bem. Tô acostumada.
ALESSANDRA: E o que você acha dessa febre de “bolo de liquidificador”?
BATEDEIRA: Brega.
ALESSANDRA: Qual o seu maior orgulho?
BATEDEIRA: Claras em neve.
ALESSANDRA: Saudades?
BATEDEIRA: Do pão de ló.
ALESSANDRA: Um sonho?
BATEDEIRA: Escrever um livro. O título eu já tenho, só falta o livro.
ALESSANDRA: E qual é? Pode contar pra gente?
BATEDEIRA (se ilumina): Afeto e Confeitos.
(Tempo)
ALESSANDRA: Me permite um ajuste?
BATEDEIRA: Pois não.
ALESSANDRA: É um título que eu tenho na cabeça há muito tempo…
BATEDEIRA: Diga.
ALESSANDRA (toma coragem): Com Açúcar com Afeto.
BATEDEIRA: Nossa, que diferença!
ALESSANDRA: Ai, você gostou?!
BATEDEIRA: Muito melhor! Muito bom! Você trabalha com isso?
ALESSANDRA: Eu não sei qual vai ser desse livro, mas com esse título, te garanto, é best seller na certa!
(Batedeira sonha com o sucesso)
ALESSANDRA: Você acredita em monogamia?
BATEDEIRA: Por que tá perguntando isso pra mim?
ALESSANDRA: Ah, não sei, talvez porque a batedeira seja a cara do matrimônio margarina.
BATEDEIRA: Isso é coisa que a propaganda colocou na sua cabeça.
(Alessandra e Batedeira se encaram)
BATEDEIRA: Você me chamou aqui porque a Vassoura deu um bolo em você, não foi?
(Alessandra não sabe onde se enfiar)
ALESSANDRA: Er… eu… é…
BATEDEIRA: Tudo bem, minha querida, eu não ligo. A Vassoura é assim mesmo, sempre voando por aí. Muito livre, ela. Vassouras são escorregadias… Sub-reptícias. Já nós, batedeiras, somos estáveis e confiáveis. A batedeira é o bem não durável mais duradouro de uma cozinha.
ALESSANDRA:Todos os caminhos levam à cópula”, essa é uma frase do Curvex. Concorda?
BATEDEIRA: Sob o meu ponto de vista todos os caminhos levam à copa.
ALESSANDRA: Lugar de mulher é na cozinha?
BATEDEIRA: Lugar de mulher é onde ela quiser.
ALESSANDRA: Posso te dar um abraço?
BATEDEIRA: Claro.
(Alessandra e Batedeira se abraçam)
ALESSANDRA: Eu te respeito e te admiro, obrigada por tudo. Eu não estaria aqui se não fosse você.
BATEDEIRA: Imagina, querida, eu que te agradeço a oportunidade.
(Alessandra disfarça a emoção)
ALESSANDRA: Conversamos hoje com a BATEDEIRA! E lembrem-se, é preciso amparar o passado para libertar o futuro! Semana que vem, com sorte, conversaremos com ela, a VASSOURA!

1 Comentários

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Uma resposta para “Entrevista com o Produto | Batedeira”

  1. elise disse:

    Excelente! Amei!

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