Espiritualidade em tempos de bad

Ser espiritualizado não te faz uma pessoa superior. Mas ter preconceito contra algumas religiões te faz sim uma pessoa pior

21.08.2019  |  Por: Gaia Passarelli

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Espiritualidade em tempos de bad

“Vocês que são assim espiritualizados, o que vocês acham de quem não é?” A pergunta foi mais ou menos assim e saiu da boca de uma amiga e colega escritora num almoço de domingo. Fiquei com isso na cabeça porque poucos dias antes, num outro almoço com outra amiga, rolou algo parecido – ela queria saber se uma colega dela, toda problemática em questões de amor e carreira, era assim espiritualizada meeeesmo. Como se uma pessoa em contato com esse lance espiritual — igreja, terreiro, reiki, tarô, sei lá — fosse uma pessoa imune aos problemas que todo mundo tem. Alguém, assim, superior. Em suma: tá tudo errado.

Quem vai se encontrar na espiritualidade às vezes está respondendo a um tipo de chamado, encontrando ali o desate pra um nó. A prática espiritual dá algum conforto, entendimento, encaixe, uma maneira de seguir em frente quando o resto parece sem sentido. Muitas vezes são pessoas como eu e você, cheias de dramas que parecem insolúveis, lidando com um histórico de más decisões e péssimos acontecimentos da vida. Também chegam ali pessoas buscando resolver questões com drogas, violência, relações abusivas, dívidas, inseguranças, traumas difíceis. É muito raro, acho, que alguém chegue na espiritualidade porque muito bem, com tudo muito bom na

Trabalho como cambona num terreiro e dá pra contar nos dedos de uma mão quantas vezes alguém chegou ali dizendo que esta ótimo e que veio agradecer. É bonito quando isso acontece, mais ou menos como quando o fiel vai na igreja agradecer uma graça pedida e alcançada. Cada fé tem sua forma de chamar e de lidar com isso, mas uma coisa que é comum a todas é que quem chega ali não tá legal, tá meio passional por dentro, sei lá, mil coisas, e tá buscando uma direção, uma esperança que não encontrou em outro lugar. Tendo a pensar que nos terreiros isso é especialmente verdade porque provavelmente antes de chegar ali a pessoa ja passou por igreja, médico, terapia e não encontrou o que precisava.

Na Umbanda cada um tá na sua missão e o importante é estar pronto pra acolher quem procura

“A Umbanda é a arma secreta do brasileiro,” um amigo da minha mãe costumava dizer. É um tipo de último recurso onde muitas vezes se chega sem contar pra quase ninguém, levado por um parente ou amigo muito próximo. Não por acaso muita gente de terreiro não compartilha em rede social e, se perguntado no trabalho qual religião pratica, responde “católica” pra não ter que falar muito. Afinal, espiritualizado da Umbanda ou do Candomblé é macumbeiro e é mal visto — a não ser quando é hora do desespero. Mas é um erro achar que a pessoa espiritualizada, de qualquer fé, é melhor ou pior do que pessoa ateísta. Também é um erro achar que um ateu é melhor, ou mais inteligente, ou mais sensato que uma pessoa que batizou os filhos na Igreja.

Então, pra minha amiga do almoço de domingo, respondo que a gente aqui desse lado não acha nada. Na Umbanda em especifico a gente acha que cada um tá na sua missão e que o importante é estar pronto pra acolher quem procura. O erro está, sempre, em se achar melhor ou pior que outra pessoa por ser de uma religião ou por negar todas. Isso é meio óbvio, o tipo de coisa que idealmente nem se precisaria escrever. Mas visto a recente polêmica em torno de artistas de enorme alcance no brasil que alteram letras de musica para não citar entidades do Candomblé ao cantar, talvez seja preciso dizer que a espiritualidade não te dá o direito de ser um idiota.

É uma besteira sem tamanho, sim, artistas alterarem a letra da musica pra não dizer o nome de Iemanjá. Mas talvez ainda pior seja que alguém venha criticar as moças por usarem determinadas roupas ou tratarem de sexualidade em suas letras.  Essa enorme cruzada de valores familiares, tão bem sucedida em ditar a artistas a alteração de letras de musica, tem outro lado muito mais grave: o aumento de depredações de terreiros em varias partes do brasil. Sem contar o enriquecimento descontrolado de certas instituições, o nefasto aumento de poder da bancada de Deus na politica nacional e a volta de ensino religioso nas escolas. Em resumo: o  violento cerceamento de liberdades que anda batendo na nossa porta a cada dia.

Gaía Passarelli é jornalista e escritora, autora de Mas Você Vai Sozinha? (Globo Livros, 2016). Nascida e criada em São Paulo, mora num prédio velho da Bela Vista com o filho, três gatos e uma crescente coleção de guias de viagem. Você a encontra no twitter @gaiapassarelli e no site gaiapassarelli.com

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