Estamos todos deprimidos?
O que há por trás da explosão de diagnósticos psiquiátricos, da onde veio a ideia de que tristeza é ruim e quem sai ganhando com uma sociedade dopada
12.02.2020 | Por: Maria Clara Drummond
“De perto ninguém é normal”, é o que diz Caetano Veloso em Vaca Profana, canção de 1986. Atualmente, essa frase ganha contornos um tanto literais, dada a profusão de diagnósticos psiquiátricos, elaborados a partir de uma combinação de sintomas. Eis um bom teste de Buzzfeed: clique nas alternativas e descubra se você é deprimido, bipolar, borderline, ansioso, e por aí vai. O objetivo aqui não é fazer troça, e sim questionar se estamos vivendo uma epidemia de transtornos mentais ou uma epidemia de diagnósticos, impulsionada, talvez, pela ânsia de lucros da indústria farmacêutica. E tudo indica que trata-se da segunda opção. A crescente sensação de angústia que experimentamos é uma resposta natural aos problemas tanto do mundo quanto da nossa vida pessoal, e não são necessariamente um desequilíbrio químico. “Os diagnósticos estão se tornando cada vez mais fluidos e imprecisos. Por exemplo, 46% dos americanos têm algum indício de transtorno mental. É um número muito inflado”, diz Maria Aparecida Affonso Moysés, psiquiatra e integrante do Despatologiza – Movimento pela Despatologização da Vida. “As pessoas que realmente estão com problemas psíquicos são prejudicadas porque entram nessa enorme gaveta.”
Nunca tomamos tantos remédios. No Brasil, em seis anos, o uso de antidepressivos aumentou 75%, segundo a OMS. No entanto, há mais casos de depressão leve e moderada, enquanto os casos graves mantêm-se estáveis. Isso é consequência direta do aumento do número de transtornos psíquicos cadastrados no DSM – Manual de Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais. Em princípio, seu objetivo era servir como instrumento complementar, mas tornou-se um método reducionista de diagnóstico, principalmente a partir da terceira versão, quando seu olhar passou a ser mais psiquiátrico, em vez de neurológico. O DMS-5, sua última edição, publicada em 2013, tinha mais de 300 doenças, o triplo da versão original, de 1952. Isso contribui para o olhar biologizante que ignora a subjetividade do paciente.

A psiquiatria é o ramo da medicina que recebe mais dinheiro da indústria farmacêutica. O motivo é óbvio: não há ponto de corte quando o assunto é transtornos mentais. É sempre possível criar uma nova doença e, como consequência, novos remédios, o que não ocorre em outras especialidades, em que há exames que definem o diagnóstico com precisão. O americano Joseph Biederman, um dos responsáveis pela alteração dos critérios do transtorno bipolar, foi processado e condenado por conduta antiética com a indústria farmacêutica. Ainda assim, 80% dos psiquiatras que elaboraram o DSM-5 têm vínculos com grandes laboratórios. Há muita gente lucrando toda vez que você decide calar sua angústia existencial com um comprimido, como se fosse uma doença, e não um estado natural que todo mundo eventualmente experimenta.
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Há questões ainda mais profundas que a mera comercialização de remédios. O início dessa mudança ocorreu na mesma época em que os economistas neoliberais ampliaram o conceito de capital ao humano, durante os anos 60. “No último manual, está escrito que a hipomania é um estado socialmente desejado porque o indivíduo tem aumento da eficácia, desempenho e criatividade. Isso deixa evidente que existe um viés ideológico nessa seleção. A depressão inviabiliza o acúmulo de capital humano. A fadiga, lentidão, e dificuldade de se comunicar são uma afronta a uma sociedade mercantil cujo objetivo é a otimização”, diz o psiquiatra Fernando Tenório. Não à toa, a Ritalina, um dos medicamentos mais vendidos, justamente aumenta a produtividade ao máximo – no Brasil, por exemplo, o consumo da substância cresceu 775% em dez anos, segundo pesquisa do Instituto de Medicina Social da Uerj. “É como se você precisasse se transformar na sua melhor versão mesmo que não esteja doente”, continua.
Primeiro, é importante entender como é feito um diagnóstico psiquiátrico. Os médicos costumam repetir que as doenças psíquicas são causadas por algum desbalanço químico no cérebro, e um remédio equilibraria isso. Mas nenhuma pesquisa conseguiu comprovar que há diferenças no cérebro de uma pessoa psicótica ou deprimida. É uma teoria que só faz sentido a partir de uma lógica inversa: sabemos que certos antidepressivos aumentam os níveis de serotonina. Portanto, a depressão deveria ser causada pela falta de serotonina. “Segundo esse raciocínio, podemos dizer que a febre é causada por falta de dipirona”, compara Maria Aparecida. É até mais seguro afirmar que na verdade ocorre o contrário: o uso de psicoativos provocam alterações anatômicas que causam doenças psiquiátricas reais. E isso não é segredo: os próprios laboratórios admitem que o uso de psicoestimulantes podem aumentar as chances de um surto psicótico. Nos Estados Unidos, existiu um estudo sobre adolescentes com transtorno de humor que que estavam internados por conta de surtos psicóticos. Mas 85% desses pacientes não tinham nada na sua vida anterior que sugerisse essa tendência. No entanto, estavam tomando substâncias psicoativas há mais de três anos”, exemplifica.
Precisamos tentar ao máximo lidar com nossas próprias dores
A neurocientista Nancy Andreasen publicou diversas pesquisas que mostram que o uso continuado de antipsicóticos encolhem o córtex pré-prontal do cérebro – ou seja, uma lobotomia. O nome antipsicótico assusta, mas é esse tipo de medicamento comumente receitado para transtorno bipolar. Antes, o diagnóstico recebia outro nome: psicose maníaco-depressiva. Com o rebranding, a doença perdeu o estigma e ganhou glamour, virou conversa cotidiana, alavancando as vendas de remédios. “A tristeza é desvalorizada socialmente, é necessário que seja suplantada, a pessoa precisa voltar ao trabalho, e dessa forma a patologização torna-se uma estratégia de produção de eficiência”, analisa Fernando Tenório. Hoje, cada pessoa tem um transtorno para chamar de seu, e parece que não causa mais espécie falar do assunto, mas nem por isso desapareceu o tabu. “O lado positivo da popularização dos antidepressivos é ilusório. O estigma volta de imediato quando ocorre um surto psicótico real”, diz Maria Aparecida.

A tristeza, a angústia e o vazio no peito fazem parte da vida. Muitas vezes, quem apenas está passando por um momento difícil, mesmo que seja apenas existencial, ganha um rótulo médico inapropriado, e busca resolver uma questão profunda tratando apenas o sintoma, através de uma “pílula da felicidade”. “As medicações podem ter função em situações extremas. É o último recurso quando as demais tentativas falharam. Nós precisamos tentar ao máximo lidar com nossas próprias dores. As dificuldades são um trampolim para irmos além de nós mesmos. O nó psíquico não pode ser abafado, precisa ser processado, e esse processamento traz sabedoria, amadurece, alarga a alma. A medicação impede que esse desabrochar interno aconteça”, diz a filósofa e psicanalista Viviane Mosé. Em 1992, por exemplo, luto deixou de ser um critério que excluía a possibilidade do diagnóstico de depressão. Ora, é saudável vivenciar o luto, por mais doloroso que seja, e quando esse processo é silenciado por uma medicação, nós perdemos parte do que nos torna humanos.
A vida nos mostra que tanto a felicidade quanto o sofrimento são passageiros. Todos nós sabemos disso. E, ainda assim, parece inconcebível pausar o ritmo habitual para experimentar uma vivência que não seja positiva. “O limiar da normalidade está cada vez menor. Os seres humanos são forjados no sofrimento. Quem vive apenas em função da autorrealização está fadado ao fracasso crônico”, diz Fernando Tenório. Os antidepressivos de fato demonstram eficácia depois de algumas semanas. Porém, as pesquisas também mostram que a diferença de um antidepressivo para um placebo é praticamente nula. As semanas necessárias para a eficácia do remédio muitas vezes é o tempo hábil para a angústia ir embora de modo natural. Talvez Clarice Lispector esteja certa quando diz que é perigoso cortar os próprios defeitos. Afinal, nunca sabemos qual deles sustenta nosso edifício inteiro.
Maria Clara Drummond é jornalista e escritora, autora dos romances A Realidade Devia Ser Proibida (editora Companhia das Letas, 2016) e A Festa É Minha e Eu Choro Se Eu Quiser (editora Guarda Chuva, 2013)
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