‘Este texto é sobre você não querer mais me ver? Ou é apenas uma impressão?’

Quando o término de uma relação que parecia promissora chega com um link para um texto aberto num blog

18.01.2022  |  Por: Valérie Bourdeau

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‘Este texto é sobre você não querer mais me ver? Ou é apenas uma impressão?’

Eu estava saindo com esse cara, R, por um tempo.

Ele também escreve. Nos conectamos por isso, entre outras coisas.

Antes dele, eu estava em um relacionamento tóxico. Os detalhes não importam tanto quanto as consequências: eu quebrei. Passei meses coletando meus pedaços para transformá-los em uma obra-prima de mosaico de vidro, bem decidida a deixar a luz passar por mim.

Depois de todo esse trabalho interior, como era bom ter alguém olhando para mim como se eu fosse arte.

“Vou escrever sobre os seus olhos”, disse ele, quando o vi numa terça-feira. “A maneira como eles mudam de cor está me inspirando.”

O objetivo da arte não é ser apenas bonito, é fazer-nos sentir. “Coisa linda”, dizia ele, “eu me encanto todo dia um pouco mais com você”.

Na quinta, fizemos planos para o ano novo.

Na tarde de sábado, planejamos o que faríamos no dia seguinte. Sexted.

E no final da tarde do mesmo dia, ele me enviou um link com um texto que acabara de postar no seu blog.

“Tu te tornas eternamente responsável por aquilo que cativas”, começava.

Sorri, tentando me lembrar se havia contado a ele como O Pequeno Príncipe era um livro importante para mim. Nas semanas anteriores, compartilhamos nossos medos, traumas e sonhos mais profundos. Mas não me lembrava de ter dividido essa história em particular.

“Tenho certeza de que nos conhecemos em muitas vidas”, ele havia dito alguns dias antes. “Tenho certeza de que nos encontramos porque temos muito a aprender um com o outro.”

(Será que ele mencionou almas gêmeas? Tenho certeza que sim.)

Então, é claro, o texto sobre meus olhos estaria começando com uma frase que eu disse anos antes  —  em minha única experiência como atriz. Apenas mais uma coincidência.

Naquela época, eu era uma garota tímida e introvertida que devorava livros. Um dia, cheguei em casa dizendo: “Mãe, precisamos encontrar uma fantasia de raposa para mim, me inscrevi no teatro. A peça vai ser O Pequeno Príncipe este ano!”

Eu provavelmente tinha 10 anos e, mesmo que não conseguisse entender as profundezas de Saint-Exupery, sabia que era algo que eu precisava fazer. Eu estava simplesmente atraída por aquilo. Obviamente, o medo apareceu mais tarde. Eu queria fugir — e foda-se a grandeza dessa história.

Mas voltando: na manhã da peça, eu chorei e implorei para minha mãe me deixar ficar em casa. “Você queria isso, agora você precisa aguentar”, disse ela, com seu jeito rude de subúrbio franco-canadense. Essa é uma das coisas boas que ela me ensinou: the only way out is in. A única maneira de lidar com o desconforto é sentando-se com ele.

A apresentação aconteceu no início da manhã, na frente da escola inteira. Lembro de estar lá com pequenas orelhas peludas, as mãos suadas e as bochechas tão vermelhas que era possível vê-las corar através da minha maquiagem de raposa.

Foi o primeiro passo. The only way out is in. Crescer sentando-se com o desconforto.

Poucos anos depois, aquela criança que apareceu no palco com a voz trêmula fez um discurso para 500 pessoas com a facilidade e a casualidade de quem fala sobre o quanto nevou com um vizinho (sou canadense  —  é uma conversa frequente).

R vai adorar essa coincidência, pensei. Lembrei que O Pequeno Príncipe foi o primeiro livro que comprei no Brasil. E sorri, voltando ao texto dele no blog.

Comecei com o coração aquecido, mas, conforme ia lendo o texto, mais confusa eu ficava. Que porra é essa? Não só o texto era completamente incoerente com tudo o que vivemos nas últimas semanas, mas também parecia ter sido escrito por alguém com a inteligência emocional de um pão de queijo.

Ele realmente tinha acabado de me enviar um link para anunciar, por meio de um texto num blog, que ele não queria me ver novamente? Or there was something lost in translation? Afinal, quem poderia fazer uma coisa dessas e usar, sem ironia, a palavra responsável uma dúzia de vezes?

Mandei uma mensagem: “Este texto é sobre você não querer mais me ver? Ou é apenas uma impressão?”

“É sobre assumir que meu coração ainda não está aberto, e não me sinto 100% justo em não dizer isso. Vou entender se você não quiser mais me ver, mas vou sentir muita falta do seu espírito. Você ser feliz é muito importante para mim”, ele digitou de volta.

Respirei fundo.

Eu estive lá algumas vezes — exceto que não publicamente. Estar fora de um relacionamento tóxico pode ser assustador pra caralho também.

Sinto muito. E ao longo dos anos aprendi a controlar minhas emoções em vez de tentar entorpecê-las. The only way out is in.   Mas antes de chegar lá, muitas vezes me desconectei para não sentir. O preço a pagar, quando fazemos isso, é  desconectar e nos distanciar de nós mesmos.

“Ele está olhando para mim com tanta admiração” ,  eu disse à minha melhor amiga algumas vezes. “E se ele apenas perceber que eu não estou à altura? Talvez eu devesse parar de vê-lo e voltar com aquele outro que tá no meu pé. E se ele entrar aqui dentro e quebrar tudo que eu demorei tanto para reconstruir?”

“O que sempre mentia? De jeito nenhum você vai sair com alguém que não te merece só porque é mais fácil do que o medo de não ser o suficiente. Você sabe que é”, ela disse, listando todos os motivos pelos quais eu era incrível. (Só posso recomendar que você encontre amigos assim —  lista disponível sob demanda).

“E se ele acabar quebrando você, você se reconstruirá”, ela concluiu.

Organizando meus pensamentos, voltei ao texto que ele escreveu mais algumas vezes para encontrar uma diretriz no meio daquela incoerência,   quando parei nessa parte:

“Aquelas pessoas confessam coisas, contam histórias, me tocam. E eu quero retribuir, também quero oferecer algo. Mas quando faço isso, lá vem uma frase ao pé do meu ouvido: ‘Tu te tornas eternamente responsável por aquilo que cativas.’ Sim, mas lidar com isso? Como saber se um gesto vai se transformar em algo que não corresponde à altura?”

Lembrei de como ele se emocionou no dia em que eu fiz umas coisas que ele gosta para o jantar sabendo que teve um dia ruim.

“Eu acho que ninguém nunca fez algo assim por mim”, admitiu.

Como assim?, pensei comigo mesmo. Um jantar? Por que alguém seria digno de meu tempo se eu não estivesse interessada em seu bem-estar? E se eu sou muito grata por sua existência — não é normal pelo menos ter a gentileza de celebrar isso? Como às vezes o silêncio é a melhor resposta, apenas o abracei. Sei por experiência própria que receber pode ser difícil quando achamos que não merecemos.

Eu também estive lá. Agora que eu aceitei ocupar um espaço meu, em toda sua grandiosidade, também entendi ser essencial manter um outro espaço para as pessoas que deixo entrar em minha vida. Como se eu falasse: por favor, sinta-se à vontade para ser você mesmo, ocupe aqui do jeito que você quiser, com toda a sua luz e sombra. Viver em sintonia com essa vibração é apenas uma maneira de dizer a alguém: eu vejo você, e te aceito, sem julgamentos.

Deixe eu tentar explicar de outra forma. Eu sou Amor e procuro Amor.

O que não significa necessariamente uma busca por uma parceria romântica. Eu não quero ser sua, nem quero que você seja meu. Talvez essa ideia venha depois . Mas, fundamentalmente, o Amor, em sua forma mais pura, não tem nada a ver com relacionamento .

Falo em Amor como uma frequência. Como uma conexão profunda e a habilidade de ser vulnerável. Como amor-próprio radical, troca de energia. Amor como a morte do ego. Amor como a base de tudo.

Ele me olhou nos olhos. “Você sabe que é muito especial, certo?”

Depois de revisitar essa memória, liguei para ele.

“I don’t want to stop seeing you ”,  falei. “É normal não se sentir aberto o tempo todo. Eu também não sou. Mas adoro passar tempo com você. Não nos despedimos das últimas vezes reconhecendo como é bom estar juntos?”

Ele era evasivo. Parecia que eu estava falando com um estranho.

“Não sei, se continuarmos fazendo isso, continuaremos aprofundando as coisas.”

Mas e as conversas sobre querer sentir, mergulhar, sobre o quão superficial era querer ficar à beira-mar. Aprofundar não era a meta?

Nos encontramos no dia seguinte. A ênfase do texto era sobre ser emocionalmente responsável, mas ele estava lá, me dizendo que estava ocupado e que não teria tempo para subir. A conversa teria que ser na calçada, rapidamente se fosse possível. Ele não conseguia me olhar nos olhos.

Como alguém tão inteligente pode escrever “como nos responsabilizar por algo que não sabíamos que estávamos cativando?” Será que ele leu O Pequeno Príncipe ou apenas viu aquela citação em um adesivo de pára-choque? Ele estava realmente sugerindo que não sabia que estava estabelecendo laços? Onde ficou a responsabilidade?

O que quer dizer “cativar”?
– É uma coisa muito esquecida, disse a raposa. Significa “criar laços”.
– Criar laços?
– Exatamente, disse a raposa. Tu não és ainda para mim senão um garoto inteiramente igual a cem mil outros garotos. E eu não tenho necessidade de ti. E tu não tens também necessidade de mim. Não passo a teus olhos de uma raposa igual a cem mil outras raposas. Mas, se tu me cativas, nós teremos necessidade um do outro. Serás para mim o único no mundo. E eu serei para ti única no mundo.

“Que babaca”, meus amigos me disseram, lendo o fatídico texto. “Ele realmente mandou um link para você para terminar as coisas?!” Eu balancei a cabeça, ainda debatendo. Tentando ver a pessoa em sua integridade, tentando entender a dinâmica entre a luz e a sombra.

E como parece que tudo isso se tornaria uma metáfora do Pequeno Príncipe, não pude deixar de pensar naquele desenho , incapaz de descobrir se o que está na minha frente é um chapéu   ou uma cobra que engoliu um elefante.

“R”, perguntei a ele, enquanto ele estava de pé, de braços cruzados, me evitando, “como você passou de planejar um encontro, mandar texto sugestivo, dizendo que queria me ver, para esse discurso totalmente incoerente horas depois? O que aconteceu? Nada era real?”

“Eu adoro o tempo com você. Eu simplesmente não estou aberto, preciso ser verdadeiro comigo mesmo”, confessou.

E continuou: “Vou contar uma história, então talvez você entenda. Com minha ex, antes que as coisas ficassem tóxicas, eu também estava curtindo. Mas eu deveria ter ouvido aquela voz me dizendo para ir embora. Não sei explicar, só está aí”, disse ele.

Deveria ter apontado que com a ex, aquela vozinha era provavelmente sua intuição, enquanto a que ele estava ouvindo agora poderia ser apenas medo? E como você diz essas coisas quando está implicada na situação, sem parecer tendenciosa?

“Eu não acho que seja medo”, ele rejeitou, enquanto eu mencionei meu próprio processo.

Ele não acha que é medo, pensei, mas ele me mandou a porra de um link porque era desconfortável ter essa conversa. Então é falta de coragem?

Para não ter medo precisamos estar desconectados de nós. Tendemos a limitar a nossa compreensão do medo quando ele é, na realidade, a raiz de tantas emoções alheias que encontramos ao nos relacionarmos:  preocupação, insegurança, sensação de inadequação, inferioridade, ansiedade. Ficamos hiper conscientes de como nos sentimos para nos proteger para acordar um dia pensando how the fuck did I end here, numa situação tóxica, quando prometi a mim que nunca mais iria acontecer?

Nos abrimos para aqueles que são dignos de assumir o risco. A vulnerabilidade é a porta de entrada para a conexão. E quanto mais perto chegamos, mais nosso mecanismo de autodefesa é ativado. Aumento da ansiedade. Porque o sentimento abre também uma porta para o sofrimento. Acabamos escolhendo a distância. É mais fácil.

Tendemos a querer avançar rapidamente em direção à resolução, porém, a incerteza ou o desconforto pode ser exatamente o que precisamos para crescer. É nisso que frequentemente encontramos clareza, percepção e prontidão. The only way out is in.

Foi o caso aqui? Se eu tiver que escolher — prefiro esta opção em vez da que sugere que era tudo mentira. Porque, é claro, esta segunda opção dói. Independentemente de escolher vibrar em uma determinada frequência, incondicionalmente, para fazer as pessoas se sentirem vistas, esperamos reciprocidade.

Então, foi um chapéu ou uma cobra que engoliu um elefante? Isso realmente não importa. Minha experiência é a que escolho, e a pessoa que acho que conheci tinha mais a ver com um imperador do que com o Pequeno Príncipe. Mas assim como somos observadores de nossos pensamentos, e não nossos pensamentos, o que quer que ele seja realmente não tem impacto sobre o que eu sou , apenas o observador, e eu sou Amor e Luz.

 

Valérie Bourdeau é uma escritora e editora franco-canadense que se apaixonou pelo Brasil por meio do oceano e da musicalidade da língua portuguesa

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