Eu não nasci da costela de Adão
E se eu te disser que a primeira mulher foi Lilith e que ela nasceu do mesmo barro vermelho, da mesma poeira, que Deus usou para criar o homem?
27.05.2022 | Por: Mariana Caldas
“Polêmica, transgressora, insubordinada e puro instinto: Lilith é a figura mítica reconhecida como ‘a primeira mulher de Adão’, a mulher que não é pedaço do homem, não nasceu de sua costela. Seu mito nos conta sobre a expressão pura e primitiva do desejo feminino que não se submeteu e pagou um alto preço por isso: o exílio”, explica a astróloga Claudia Lisboa.
Além de ser um símbolo e um sentimento muito importante para a astrologia, Lilith é uma protagonista icônica da mitologia babilônica, muito famosa no folclore popular hebreu medieval e figura controversa da cultura judaica e cristã, que pode ter sido excluída dos textos sagrados. É reconhecida por muitos como a primeira mulher criada por Deus, que foi feita do mesmo barro vermelho, ou poeira, que Adão.
A passagem do Antigo Testamento “Deus criou o homem e a mulher à sua imagem e semelhança” é um dos principais indícios de que Lilith realmente veio antes de Eva. “Lilith é uma das personagens mais controversas que existem na tradição judaica e cristã. Ela está em voga há algumas décadas, principalmente por ser entendida pelo movimento feminista como um ícone de insubmissão e subversão”, comenta o historiador Rodolpho Bastos, doutor em história das religiões pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), e estudioso do mito de Lilith.
No mito, Lilith não quis se submeter à Adão na cama por se reconhecer igual a ele, bateu asas e foi embora do Éden para viver sua liberdade longe dali. É claro que tamanha subversão a transformou em uma espécie de demônio, que come bebês, é sexualmente livre, e mais tarde volta ao paraíso em forma de serpente para tentar Eva a comer a maçã.
“Lilith é uma figura mitológica, com raízes no Antigo Testamento, reconhecida como ‘a primeira mulher de Adão’ – ainda antes de Eva. Questionadora, ela reivindicava seus direitos e também seu prazer, o que não era aceito por ele. Assim, foi expulsa do paraíso. Seu mito nos fala sobre a expressão do desejo feminino que não se submete, não abaixa a cabeça e pode acabar pagando um preço alto como a solidão”, ilumina Claudia Lisboa. “Ela é um dos símbolos da força feminina no mapa-astral e está relacionada à mulher selvagem, que não se submete às vontades alheias e escolhe a própria liberdade.”
Ou seja, a primeira mulher da História só queria o que todas nós merecemos: igualdade de direitos, satisfação sexual, divisão das tarefas domésticas, independência financeira, liberdade para escolher o nosso destino, direito sobre o nosso próprio corpo, poder andar tranquila na rua etc.
E a pergunta que fica é: a serviço de quem está a narrativa de que a mulher foi criada a partir da costela de Adão e por isso é um ser inferior? De muitos séculos de dominação patriarcal, é claro. Afinal de contas, não importa se você acredita em Deus, no diabo, ou no nada, o conto de Adão e Eva segue sendo um dos pilares de formação do nosso inconsciente coletivo, e está profundamente conectado com o nosso imaginário de masculino e feminino, dominação e submissão, poder e controle.
“Isso marca o principal argumento de padres medievais, de dizer que a mulher é inferior e, por isso, ela deveria obedecer e seguir as ordens do homem. Na idade média, em alguns imaginários, há essa associação entre Eva e Lilith. Feita pelo homem para ser auxiliar e serva. Eva ainda assim desobedeceu às ordens do criador e cede ao erro. As duas figuras são entendidas como entidades demonizadas. Lilith no judaísmo e Eva dentro da tradição do cristianismo”, completa Rodolpho Bastos.
A questão é que não importa se Lilith veio antes de Eva ou não, mas sim os danos que essa falsa ideia de inferioridade causou no imaginário e no inconsciente das mulheres ao longo dos séculos e da história, desde que o mundo é mundo. Não é à toa que hoje estamos tendo síndrome da impostora, achando que precisamos fazer muito mais do que os homens para ser merecedoras de metade do salário que eles ganham, entre muitos outros exemplos.
De onde será que vem essa sensação de que nunca seremos suficientes? A ideia de inferioridade está instalada na nossa alma, de uma forma tão profunda que é difícil acessar. E se Lilith puder nos ajudar, com sua força que inspira liberdade e revolução, que seja!
Mariana Caldas, produtora de conteúdo da Hysteria, é diretora, fotógrafa e jornalista. Seu trabalho autoral investiga e revela a natureza selvagem que vem de dentro
0 Comentários