Fazer escolhas sobre a própria vida no Brasil é privilégio

O triste do Brasil é que mulheres não abortam só porque elas não querem ter um filho, mas também porque invariavelmente elas NÃO PODEM

14.11.2017  |  Por: Stephanie Ribeiro

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Fazer escolhas sobre a própria vida no Brasil é privilégio

Foto: Zô Guimarães

Neste ano recebi mensagem de uma mulher querendo denunciar (para mim) o parceiro homem que a tinha forçado a fazer um aborto. Fiquei surpresa pois foi a primeira vez que me deparei de fato com um caso em que o homem, mesmo ativista conhecido de esquerda, tinha não só forçado a mulher a abortar, como ainda a tinha colocado numa situação de risco tão séria que ela até hoje faz tratamento e nem sabe se poderá ter filhos futuramente com segurança.

Me parece, por conversas entre amigas, que forçar a parceira a abortar é uma atitude recorrente entre alguns homens. E é “engraçado” que muitos publicamente se dizem pró-vida e pró-escolha das mulheres, porém, na vida íntima, são apenas “pró-eu-homem-mesmo”.

A moça que me procurou era uma mulher negra. É fato que nós feministas já estamos cansadas de escutar e falar que as ricas abortam e que as pobres morrem, sendo assim o acesso ao aborto é uma questão social. Entretanto, muitas vezes esquecemos de lembrar que o próprio direito à maternidade é uma questão social. Logo, uma questão social num país racista é uma questão de raça. Direitos reprodutivos não são só sobre aborto, mas sobre poder viver bem até mesmo quando você escolhe não abortar.

Por isso o triste do Brasil é que mulheres não abortam só porque elas não querem ter um filho, mas também porque invariavelmente elas NÃO PODEM. E não poder significa estar consciente de que você é a base da pirâmide, de que a maioria do país ganha até dois salários mínimos, de que a maior porcentagem da população nunca teve acesso a ensino superior, de que escolas públicas de qualidade são poucas, as creches são escassas, o transporte é caro, a comida é cara, as roupas são caras e, certamente, a mulher passará por “aperto” e “necessidades” para criar um filho. E invariavelmente o verá muitas vezes passando vontades e necessidades.

Afinal, a meritocracia é uma grande mentira, pois seus familiares trabalharam duro a vida inteira e às vezes não têm dinheiro para enterrar alguém quando morre. Então o aborto muitas vezes é uma escolha não de preocupação consigo mesma, mas de preocupação até com a vida que pode vir ao mundo.

Fazer escolhas sobre sua vida no Brasil é privilégio.

Então, falar de interseccionalidade, para mim, é falar sobre como o direito ao aborto e o próprio direito à maternidade perpassam raça, classe e gênero. Nesses estigmas todos vamos traçando um panorama de um país violento para mulheres, em especial mulheres negras, um país em que pessoas contrárias ao aborto se unem para tirar um direito de que ainda nem gozamos.

Os tais defensores da família não se unem para lutar pelo direito de vivenciar a maternidade de uma forma plena, nem sequer pensam que defender a família é defender a existência a longo prazo, o que é impossível para muitos jovens negros — um deles morre a cada 23 minutos no país. Como ousam dizer que se preocupam com a família enquanto tentam controlar úteros, mas se esquecem de que o que sai deles precisa permanecer vivo e bem?

A maioria dos brasileiros reforça uma visão estereotipada da maternidade, só romantizando a questão com a ideia de que uma mulher, ao ser mãe, é mais realizada e feliz, quando, na verdade, a maioria delas corre o risco de demissão ou de viver tendo seu filho criado por seus outros filhos, pois ela própria, a mãe, gasta mais tempo no transporte público do que com as crianças.

Na minha cabeça a realidade dos nossos tempos é próxima daquela em que mulheres negras escravizadas colocavam suas vidas em risco, preferindo abortar a pôr um filho no mundo para que fosse um escravo, filhos estes, aliás, frutos da violência do “senhor” e do Estado para com seus corpos. Filhos estes que, quando por escolhas delas, ao não nascer, mostravam que ainda existia um poder delas, um poder nosso para nós mesmas, uma dignidade que não morria quando essa escolha se concretizava, mesmo que fosse uma escolha não fácil. Era uma escolha para reafirmar a dignidade.

Não defendo o aborto porque quero abortar. Defendo o aborto pois escolher sobre minha vida mostra para o mundo que sou humana.

Penso nessa história de moça que me procurou, porque me chocou tanto. Acho que a diferença daquele homem que a obrigou abortar para aqueles que defendem a PEC 181 pode ser ideológica, no palanque, mas, na vida real, sabemos que mesmo em diferentes partidos,  muitos homens não são diferentes em seu desrespeito para com nossas escolhas.

Nós, mulheres, quando dizemos que queremos ou não ter um filho, estamos nos dignificando. Como pode um homem se dizer preocupado com a sociedade ao obrigar uma mulher a passar por cima da sua própria vida? Nós, mulheres, ainda não escolhemos o que queremos. Estamos sujeitas a vontades de homens, quando eles dizem que não podemos, transformam a legislação. Quando dizem que podemos, ferem a própria legislação.

O aborto é um direito humano sobre o próprio corpo. Estamos nós, mulheres, vendo nossas possibilidades sendo jogadas como petecas, de um lado para o outro, sem avanços significativos em relação a esse assunto há anos. Dizem alguns que não avançamos porque vivemos num país caótico em que as bases religiosas impedem que o aborto se torne um fato.

Eu sempre respondo que no fundo vivemos num país de homens no comando, homens que rifam nossas vidas para seus interesses pessoais e políticos. Colocar a culpa na igreja é fácil quando se quer ficar em cima do muro no que diz respeito ao direito das mulheres. Ainda mais quando a vida dessas mulheres tem um valor menor para você. Com esquerda ou com direita, a gente continua não sendo vista como gente.

 

Stephanie Ribeiro é arquiteta e ativista feminista

 

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